A responsabilidade de usar a palavra nos tempos atuais não é pequena porque podemos cair num niilismo, num pessimismo ou num otimismo voluntarista”. Foi escolhendo o “realismo esperançoso” que Amelia Cohn (Universidade Santa Cecília – Santos/SP) iniciou a conferência “Desconstrução, desmonte ou destruição das políticas públicas de saúde?” no terceiro dia do 7º Simpósio Brasileiro de Vigilância Sanitária (7º Simbravisa), realizado em Salvador até o dia 30 de novembro. A exposição, coordenada por Ana Luiza Queiroz Vilasboas (ISC/UFBA), pesquisadora do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS-ISC/UFBA), explorou elementos que, segundo a conferencista, comprovam a “sutil, perigosa e mortal” desconstrução do Sistema Único de Saúde (SUS). “O título dessa conferência não é um mero jogo de palavras, precisamos entender o que está acontecendo com o SUS nos dias atuais”.
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A socióloga afirmou que o SUS não está sendo destruído, mas descontruído. “O atual governo faz jogo de varetas com o SUS e com outras políticas sociais. Desconstrói o conjunto sem aparentemente alterar o todo”. Segundo a conferencista, a desconstrução é feita a partir de medidas pontuais e aparentemente desorganizadas, mas há lógica nas ameaças, citando como exemplo a ameaça de extinção do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), do Farmácia Popular e do Mais Médicos. Em um cenário mais geral, Amelia apontou passos, em planejamento ou execução, para desconstrução de direitos sociais, que incluem medidas na área econômica, como a PEC 55/2016 e os cortes nos orçamentos; alterações nas regras para pedaladas fiscais e anistia do caixa 2; e a retirada de direitos pétreos dos/as trabalhadores/as por meio de uma reforma da previdência “a la Chile”. “Se o Welfare State, para onde a Constituição apontava, foi construído a partir da sociedade do trabalho, o que fazer quando ela deixa de existir, quando trabalhadores assalariados são substituídos por uma massa de colaboradores, sem carteira assinada nem direitos trabalhistas?”, questionou.
Diferentes frentes de ataque: Ainda que o atual governo “não preze pela elegância”, segundo Amelia, as medidas aparentemente desencontradas apontam um caminho perigoso. Ela citou como exemplo a área da assistência social, que se inspirou no SUS e na luta pelo direito à saúde para construir o SUAS – Sistema Único de Assistência Social, e que agora “voltou a ser coisa de mulher”. “A primeira dama assume o programa Criança Feliz, que eu não sei o que significa, por sua experiência em criar seu filho. Ela pode até ter experiência na criação de seu filho, mas deve ter mais experiência com a terceira idade” (risos).
A socióloga falou também de recente portaria do Ministério da Saúde (MS) que institui que as comunidades terapêuticas são parte do SUS. “Não há exigências que essas comunidades, geralmente religiosas ou filantrópicas, tenham médicos, enfermeiros etc. […] É um retorno à reinternação permanente sem que haja controle”.
Luta no atacado e no varejo: Para resgatar os princípios, diretrizes e valores do SUS, a conferencista acredita que os defensores do direito à saúde precisam se preparar para uma luta dura e dolorosa, que deve ser executada nos ambientes macro e micro. “Como essas medidas aparentemente desconexas minam o SUS? […] Não é mais guerra de movimento e de posição. É guerra de movimento e guerra de articulação no micro”. A socióloga explicou que a capilaridade das políticas sociais no ambiente privado das pessoas torna necessário que se observe lá o impacto do atual cenário.
Amelia destacou que o discurso usado nas décadas de 70 e 80 não dão contam do contexto atual. “A sociedade, os partidos e os sindicatos mudaram. Os movimentos sociais não representam mais interesses universalizáveis, há segmentação de demandas, a sociedade vive um processo de divisão”. A percepção de direito mais ligado ao serviço privado – “Eu pago plano de saúde, eu contribuo com a previdência” – do que ao público e a falta de novas lideranças sólidas, inclusive na Saúde Coletiva, foram outros fatores apontados pela conferencista como desafios para a defesa do sistema. “Saúde como direito ainda é muito abstrato para a população. […] A saúde como foi concebida no SUS não é pauta dos movimentos populares, sua gestão é”, alertou a pesquisadora.
“Vamos ter muita desconfiança, olhos abertos, sutileza e generosidade para olhar o outro. […] O atual governo, o atual Congresso, os atuais mandantes, não é que eles desprezem a sociedade, desprezar é pouco. Eles menosprezam os pobres, a classe média, eles não estão nem aí para a sociedade. Nós precisamos começar a fazer o trabalho de formiga dentro da sociedade, com todo o respeito para não nos impormos tecnicamente com nosso discurso, sem capacidade de ouvir o que a sociedade acha. A sociedade tem direitos, tem dignidade e isso precisa ser conquistado”, concluiu.
Confira bate-papo do OAPS com Amelia Cohn após sua conferência no 7º Simbravisa:
OAPS: Em sua conferência, você afirmou que o atual cenário pede sutileza. O que a sutileza deve trazer a esse movimento de resistência?
Amelia Cohn: Não é a sutileza nas ações, é a sutileza nas formas de apreender o que está acontecendo na nossa sociedade para que a gente possa identificar novos processos sociais e políticos que até então não entravam em nosso universo porque a gente trabalhava com partidos, com movimentos populares etc. A juventude está aí. Há um bando de novos sujeitos, novas mulheres, novos negros, novas negras que a gente precisa ver o que está querendo, o que está acontecendo. A gente não tem olhado para isso. É uma sutileza na análise, na capacidade de identificar.
OAPS: Isso tem a ver com a dificuldade de encontrar interesses universalizáveis no meio de interesses e pautas segmentadas, fragmentadas?
Amelia Cohn: Sim, porque isso é próprio das realidades contemporâneas. Você anda na rua e está cada um com seu celular na calçada, você não vê o outro, você não enxerga o outro. A competição entre as pessoas, o individualismo, está cada vez maior e isso acontece também nos setores organizados. Mas quais são as novas formas de organização? Não basta eu identificar que tem redes, como elas funcionam, as redes na internet. É preciso entender quem são essas pessoas, que significados elas dão para isso, que potencial significado em defesa do SUS, da saúde, da vida e da participação política elas dão para isso.
OAPS: Em sua conferência você falou sobre as possibilidades de desmonte, destruição ou desconstrução do SUS e disse acreditar na desconstrução do sistema. Muito além de um jogo de palavras, o que significa dizer que o SUS está sendo desconstruído?
Amelia Cohn: Eu não acredito. Eu tenho evidências e tentei mostrar que há uma desconstrução. O que é a desconstrução? Eu tiro elementos chaves do SUS – e eu dei exemplos aí – e o SUS fica aparentemente como está. Eu não desmontei, eu não destruí o SUS, mas na verdade eu o ataquei de morte. É a metáfora do jogo de varetas.