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A dengue sob a ótica da Saúde Coletiva: uma doença endêmica num país desigual

Daniel Lyra-Queiroz

Hospital de campanha em Ceilândia, no DF, para atender casos de dengue. Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

Na Epidemiologia e, especificamente na Medicina Tropical, será que o processo saúde-doença se restringe ao ambiente, vetor e agente causador? Seria então a dengue, doença viral transmitida principalmente pelo mosquito Aedes aegypti, uma questão resolvida simplesmente no combate ao vetor em países tropicais? O professor Naomar de Almeida Filho, no livro O que é saúde (2011), faz o convite para os leitores olharem a Saúde, entre outros elementos, como um problema filosófico, científico, e político. Dessa maneira, além do biomédico, é preciso discutir pela ótica da Saúde Coletiva essa doença que registrou 991.017 casos prováveis apenas em 2024, segundo o Ministério da Saúde.

Temperaturas elevadas e fortes chuvas são um prato cheio para a reprodução do mosquito, principal vetor da doença. Em 2023, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), o país apresentou a temperatura média mais elevada desde 1961: 22,97°C. Somam-se às altas temperaturas, recordes na média de chuvas em diversas localidades brasileiras. Acontece que, além do clima, há outros atravessamentos que influenciam diretamente no processo saúde-doença e ajudam a explicar o momento que estamos vivendo. A desigualdade social é um deles.

O Brasil está entre os países mais desiguais do mundo, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), onde 46,2% das moradias têm algum tipo de privação ao saneamento básico, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Considerando o delicado contexto, a epidemiologista da UFSC e coordenadora da Comissão de Epidemiologia da Abrasco, Alexandra Boing, destaca a necessidade de uma abordagem intersetorial para a dengue.

“O resultado de uma combinação de fatores, como ambientais, clima, calor, chuvas, da mobilidade das pessoas, da falta de estrutura, de saneamento das cidades em um país altamente desigual. O Brasil ainda convive com parte considerável da população sem acesso a condições mínimas de saneamento básico. Somam-se a isso medidas ineficazes de combate ao vetor. Para o combate, são fundamentais ações intersetoriais e com o olhar para as desigualdades sociais”, explica a pesquisadora.

Historicamente, no país, de acordo com a coordenadora da Comissão de Epidemiologia da Abrasco, a dengue ocorria em ciclos endêmicos, com epidemias a cada quatro ou cinco anos. Há, inclusive, um histórico bem-sucedido no combate ao vetor, mas as cidades e a sociedade mudaram. Fatores como o crescimento desordenado, o aumento na mobilidade das pessoas e do vetor, as mudanças climáticas, a grande produção de lixo, a falta de estrutura e saneamento das cidades impactam de forma significativa neste cenário e o desafio aumentou.

Com a mudança de cenário e a chegada de novos elementos, o esforço para combater a dengue e pensar os processos em saúde encontra amplo amparo no tripé da Saúde Coletiva: Ciências Sociais e Humanas, Epidemiologia e Planejamento e Gestão em Saúde. O diálogo entre pesquisadores, profissionais da saúde, sociedade civil, movimentos sociais e usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) é um terreno fértil para reflexão, inovação e elaboração de novas estratégias.

Uma novidade adotada pelo Governo Federal é a vacina contra a dengue, antes disponível apenas na iniciativa privada. O Brasil é o primeiro país do mundo a oferecer o imunizante por um sistema público e universal. A vacina foi incorporada em dezembro de 2023 após análise da instância responsável no SUS, a Comissão Nacional de Incorporações de Tecnologias no SUS (Conitec). A expectativa é vacinar, segundo o Ministério da Saúde, 3,2 milhões de pessoas em 2024, com duas doses e intervalo mínimo de três meses.

“A vacinação se dará de forma progressiva, dado o número limitado de doses produzidas pelo laboratório fabricante. Os critérios para distribuição inicial para um grupo de municípios foram baseados na incidência da doença e definidos pelo Ministério da Saúde e pelos conselhos nacionais de secretários de saúde de estados e municípios. Dentre o grupo para o qual a vacina foi autorizada, serão imunizadas as crianças entre 10 e 14 anos”, explicou a Ministra da Saúde, Nísia Trindade, em pronunciamento oficial em 6 de fevereiro de 2024.

Por mais que a aplicação da vacina contra a dengue pelo SUS seja uma conquista, o próprio Governo Federal e especialistas reconhecem que outras estratégias são necessárias neste momento. Para Alexandra Boing, é preciso dispor de diversas iniciativas que ocorram durante todo o ano e não apenas concentradas durante o período em que ocorre o aumento de casos.

“A vacina, na verdade, é apenas mais uma estratégia. Não se pode pensar que a vacina vai resolver o problema, é preciso combater o vetor. Além disso, neste momento, a quantidade de doses e público-alvo são reduzidos. É necessária a expansão de tecnologias e ações, outras precisam ser incorporadas como por exemplo o uso extensivo de repelentes e instalação de telas. Paralelamente, ações precisam ser intensificadas, como qualificação da infraestrutura das cidades, saneamento e provisão de água, coleta de lixo, ampliação e qualificação da APS e comunicação’, registra.

Alexandra complementa ser de suma importância superar o entendimento de que apenas ações individuais resolverão o problema e focar a ação pública em campanhas de “conscientização”.

“Não reduzimos a prevalência de tabagismo nas últimas três décadas com políticas públicas estruturadas em campanhas pedindo para as pessoas não comprarem maços de cigarro e não deixarem cigarro por perto. Foram ações voltadas a alguns macrodeterminantes que produziram impacto coletivo. A mesma lógica se aplica à dengue. Ainda que sejam importantes ações de esclarecimento sobre a água parada nos domicílios, precisamos colocar nos planos de ação de enfrentamento à dengue robustas iniciativas estruturais de acesso a serviços básicos, qualificação dos espaços públicos e privados das cidades, ampliação da APS e outras, sempre observando-se as desigualdades na ocorrência da doença e na viabilização de condições objetivas e materiais para as pessoas serem saudáveis. Isso é o que permitirá maior êxito no enfrentamento à dengue e a tantas outras doenças”, destaca.

Dessa maneira, a luta contra a dengue passa por um conjunto de medidas, políticas públicas efetivas, debate plural e qualificado e ações para reduzir a desigualdade social e, assim, ampliar o acesso da população a direitos básicos, como o saneamento.

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