O mês de março do ano em curso deixou estudantes, professores, cientistas, pesquisadores e amistosos da ciência, preocupados com o grave corte no orçamento destinado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações e Comunicações (MCTIC), considerado o mais drásticos das últimas décadas. Os dirigentes do país justificaram suas atitudes com base na crise econômica e seus reflexos na alta recessão, além do baixo crescimento do produto interno bruto.
Ora, é, exatamente nesse momento que os governos deveriam priorizar os investimentos na produção do conhecimento do país como forma de incentivar os cientistas a ajudarem a pensar formas de superação de uma das piores crises que o Brasil já viveu. Não estou falando apenas de recursos financeiros, muito menos de solicitar que seja entregue a comunidade cheques de ouro, e em “branco”, estou falando de priorizar a produção do conhecimento cientifico à serviço da superação das desigualdades políticas, econômicas e sociais, que assolam o país, desde o período colonial.
Afinal, desde então, o andar das carruagens segue a passos lentos, a que pesem as conquistas na produção do conhecimento científico. Entre elas, o surgimento das instituições de ensino superior, bibliotecas, museus e laboratórios ao longo do século passado, ainda assim, não foram suficientes para mudar os pensamentos positivista, funcionalista e utilitarista, ousaria dizer, de uma cega prática no modelo de financiamento das pesquisas brasileiras. Os ditames da burocracia, a insensibilidade, a prescrição de regras, pior, a “cegueira noturna” dos avaliadores e líderes de pesquisas inibem que novas gerações cresçam, floresçam e despontem com seus modos próprios e inovadores de pensarem o Brasil de hoje.
De quem tem medo os governos? Por que seguem aprisionando o crescimento em o desenvolvimento da ciência e tecnologia nas cidades brasileiras? E, mais doentio ainda, por que destinam recursos de todas as orden, somente para aqueles que ajudam a atrapalhar os caminhos rumo ao fortalecimento da ciência comprometida com o bem comum? Se desejam a ciência como simples exercício de poder, o Brasil já fez a lição de casa no sentido reverso. Mulheres e homens admiráveis, a exemplo de Nise da Silveira, Neusa Amato, Carolina Martuscelli Bori, Alice Piffer Canabrava, Bertha Maria Júlia Lutz, Elisa Esther Habbema de Maia, Elza Furtado Gomide, Eulália Maria Lahmeyer Lobo, Ruth Sonntag Nussenzweig, Rosaly M. C. Lopes-Gautier, Oswaldo Cruz, Mário Schenberg, César Lattes, José Leite Lopes, Adolfo Lutz, Carlos Chagas, e seu filho, Carlos Chagas Filho, Vital Brazil, Milton Santos, Florestan Fernandes, Crodowaldo Pavan, entre tantos outros, insistiram, persistiram e resistiram anos após anos na defesa incondicional da necessidade do país investir, a longo prazo, em pesquisas que resolvam os problemas que inibem o desenvolvimento humano, nos dizeres de Jean-Jacques Rousseau¹: “Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana”. Nessa direção, ontem, hoje e amanhã, esse é o cheque ouro em branco, que segue, portanto, a ser necessário. O resto, é a ciência à serviço do poder pelo poder.
Se assim o é, devemos marchar em outra direção, avisando de pronto que não queremos ser prisioneiros de laboratórios sem finalidades. Não deitaremos em berço esplêndido, enquanto a realidade nos grita, sinalizando que não devemos obedecer “as novas” ordens liberais. Essas já contradizem frontalmente a nossa liberdade de escolher, priorizar e investir em estudos que posicionem o Brasil para o desenvolvimento do seu povo, com educação, saúde, trabalho, moradia, terra, alimentação, lazer e, porque não, felicidade.
Não nos parece razoável que vedemos nossos olhos diante das decisões de quais são os bons e maus projetos de pesquisas distinguidos pelos interesses do mundo capitalista e de suas formas perversas de promover os meios de produção e de consumo deseducado. Muito menos naturalizarmos os alvarás, outorgados pelos débeis ajuizamentos dos poderes executivos, legislativos e, por abusivas vezes, judicializados, se julgando no direito de dizer à Instituições de ensino e pesquisa o que elas devem ou não estudar, subsumindo assim, a autonomia dessas instituições de pensarem o Brasil e o mundo contemporâneo, recriando fronteiras, como uma verdadeira inquisição de McCarthy, entre os cientistas e seus estudos.
Logo, devemos marchar, repito, em defesa de um país corajoso, à esquerda, renovado e desejoso de investir em seus cientistas, confiante no valor imaterial, no valor intangível dos bens do conhecimento. Esse, em uma inter-relação entre povos, sem fronteiras, instigados por um conhecimento cada vez mais complexo, profundo, progressista, inteligente, desde a natureza física, biológica, social e cultural, rumo ao bem-estar da humanidade, império da razão e o desenvolvimento da ciência.
Por essas e outras razões, temos um encontro marcado com a ciência brasileira e mundial, no dia 22 de abril, sábado. Trata-se da Marcha pela Ciência. Assim como nós, mais de 400 cidades em todos os continentes, sobretudo nos Estados Unidos, onde começou a iniciativa, e Europa, marcharão conosco. Marcharemos, lado a lado com os estudantes, professores, cientistas e pesquisadores, e a sociedade civil organizada, alertando aos governantes e tomadores de decisão, do imperativo em resguardar, amparar e sustentar as instituições de Ensino e Pesquisa de todo o planeta.
A comunidade cientifica brasileira estará de mãos dadas com o mundo, na arena política, lutando pelos investimentos na ciência como um bem humanitário e como instrumento à consolidação da democracia plena em todas as nações. Se você se importa com a redução dos recursos orçamentários e financeiros das políticas de educação, ciência, tecnologia e comunicação, e reconhece que é de responsabilidade da comunidade científica a definição das linhas de pesquisas que resolvam os grandes problemas que afligem o Brasil e os demais países do planeta, junte-se a nós. Do contrário, estará delegando a outros seu lugar nas tomadas de decisões sobre os caminhos da ciência e de sua comunidade nas próximas décadas. Lembrem-se que esta não é mais a idade da inocência. É sabido, com evidências, que os governantes querem a educação, ciência, tecnologia e comunicação para impetrar o poder ou, como costumamos afirmar, para impedir seu desenvolvimento pelo mesmo motivo. Lembrem-se ainda que os cientistas mais aclarados não se satisfazem com seus laboratórios, nem se mantêm prisioneiros aos donos do saber-poder de uma ciência que ficou nos porões do século passado. Inquietam-se para compartilhar conhecimentos, agregar novas gerações de pesquisadores livres e abertos a outras formas de fazer ciência, cujos “insumos” são as veias abertas dos territórios vivos e complexos de um povo. E, como é previsível, diante do povo, os políticos, administradores, empresários do mundo capitalista se melindram.
Nesse confronto, urgente e inevitável, ou a comunidade científica se politiza, ou deixaremos que a ciência, flor exótica e delicada, exigente de condições especiais para crescer e florescer, pereça no ar. Quem pagará a conta para assistir ao fenecimento da exótica flor da ciência?
*Maria Fátima Sousa é doutora honoris causa pela Universidade Federal da Paraíba, professora do Departamento de Saúde Coletiva, da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília (DSC/FS/UnB) e associada Abrasco.
1: Discurso sobre a desigualdade. In: Rousseau. São Paulo: Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).