Pesquisar
Close this search box.

 NOTÍCIAS 

A extinção do CONSEA e a agenda de nutrição – artigo de Inês Rugani

Inês Rugani Ribeiro de Castro

Arte do Encontro Nacional 5ª+2, realizada em março de 2018, em Brasília

A Segurança Alimentar e Nutricional pode ser entendida como a “realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base em práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis” 1. A insegurança alimentar e nutricional afeta de forma desigual os diferentes segmentos da sociedade e é determinada por fatores econômicos, políticos, ambientais, educacionais, entre outros 2. A complexidade desse fenômeno, elemento fundamental da questão alimentar no contexto contemporâneo, exige políticas públicas articuladas e convergentes entre os setores e instâncias de diálogo que superem as barreiras das políticas setoriais 2,3. Há mais de duas décadas, o Brasil tem empreendido esforços nesse sentido.

A experiência que melhor expressa esses esforços é a constituição do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN) 4. Pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN) 5, a estrutura de governança desse sistema previa como elementos centrais a Conferência Nacional de Segurança Alimentar, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) e a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (CAISAN) 1,5. O CONSEA, órgão de assessoramento à Presidência da República (http://www4.planalto.gov.br/consea/), tinha como competência institucional apresentar proposições e exercer o controle social na formulação, execução e monitoramento das políticas de segurança alimentar e nutricional. De caráter consultivo, sua composição previa 1/3 de representantes de diferentes órgãos do poder executivo e 2/3 da sociedade civil. Reunindo representantes de movimentos e organizações de diferentes setores sociais, ele foi um importante espaço em que os titulares de direito, muitas vezes invisibilizados, tinham voz e influenciavam as políticas públicas. Sua composição intersetorial e interdisciplinar foi uma de suas fortalezas.

Importante conquista da sociedade civil após a redemocratização do Brasil e exemplo para diversos países, o CONSEA foi um espaço de diálogo, de articulação, de aprendizado mútuo e de concertação entre governo e sociedade. Além de atuar junto ao Executivo na esfera federal, também estabeleceu diálogo com os poderes Legislativo e o Judiciário e, ainda, com as Unidades da Federação, por meio dos CONSEAs estaduais e municipais. O CONSEA atuou em agendas estratégicas como: inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal; defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e comunidades quilombolas; fortalecimento das culturas alimentares em consonância com os biomas e ecossistemas brasileiros; fortalecimento da agricultura familiar e agroecológica; redução do uso de agrotóxicos; avanço da agenda regulatória, por exemplo, no âmbito da rotulagem de alimentos (transgênicos, ultraprocessados) e da tributação de alimentos e insumos; avanço do código sanitário de forma a torná-lo mais includente e adequado à produção em pequena escala e à comercialização em circuitos curtos, entre tantas outras 4.

Em um ciclo virtuoso de realização progressiva do Direito Humano à Alimentação Adequada, o CONSEA contribuiu para a concepção e/ou o aprimoramento de políticas públicas para a garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil. Exemplos emblemáticos disso são: a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; os Programas de Convivência com o Semiárido; a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica; o Plano Safra da Agricultura Familiar; o Programa de Aquisição de Alimentos; o Programa Nacional de Alimentação Escolar; o Guia Alimentar da População Brasileira (e o seu caráter orientador de políticas públicas). Esse processo permitiu que, em 2014, o Brasil não mais figurasse entre os países que compunham o Mapa da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU).

No âmbito da produção do conhecimento, a partir de um Grupo de Trabalho que reunia conselheiras/os que eram pesquisadoras/es, o CONSEA organizou, em 2012, o 1º Seminário Nacional de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional6. Os desdobramentos desse Seminário levaram à criação, em 2017, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Nesse processo, o CONSEA oportunizou a elaboração de uma agenda de pesquisa na qual foram sistematizadas as proposições de temas apontados nas Conferências Nacionais de Segurança Alimentar e Nutricional. Também foram debatidos os desafios para a pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil, dado seu caráter interdisciplinar, tanto na interlocução com programas de pós-graduação quanto com agências de fomento e com revistas científicas. Desde a sua origem, os referenciais da “ciência cidadã” e da “ecologia de saberes” nortearam as discussões e as bases para o lançamento da Rede de Pesquisa. Os encontros foram organizados de maneira a valorizar e dar visibilidade às pesquisas sobre as diversas dimensões da Segurança Alimentar e Nutricional, das ciências agrárias às sociais e humanas, saúde e gestão pública. Eles promoveram o encontro de saberes, pesquisa e extensão e estimularam o diálogo entre grupos de pesquisa consolidados e emergentes.

Por meio da Medida Provisória nº 870 (MP 870) 7, editada pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de governo, o CONSEA foi extinto, o que fragiliza sobremaneira o funcionamento do SISAN e compromete processos de garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada em todas as esferas de governo. Isso é particularmente preocupante em um cenário de crise econômica aliada a uma política de austeridade fiscal, marcado pelo desmonte de políticas sociais e pelo estancamento ou piora de indicadores sensíveis à degradação das condições de vida: recrudescimento da mortalidade infantil, interrupção do processo de diminuição da desigualdade de renda e de raça, aumento do desemprego e da pobreza (com indícios de que o Brasil retornará ao Mapa da Fome), recrudescimento da violência no campo, entre outros. Além disso, a extinção do CONSEA representa uma afronta à democracia e um retrocesso social, uma vez que desmonta um espaço de participação, um dos pilares da democratização do Estado, conforme pactuado na Constituição Federal.

A reação à MP 870 foi imediata e tem se intensificado a cada dia: CONSEAs estaduais e municipais, personalidades, entidades, coalizões, redes e coletivos da sociedade civil de diferentes áreas e matizes político-ideológicos e entidades internacionais estão se manifestando veementemente contra esta medida 8,9,10,11,12,13,14,15. A MP entrou em vigor quando da sua publicação e será apreciada a partir de fevereiro de 2019 no Congresso Nacional. Caberá aos deputados e senadores recém-eleitos acolher e desdobrar, de forma sensível e comprometida com o interesse público e com a garantia de direitos, as análises e propostas que a sociedade civil encaminhará no sentido de reverter a extinção do CONSEA. Compreendendo que a alimentação é determinante decisivo das condições de saúde e que o Direito Humano à Alimentação Adequada e o direito à saúde são indissociáveis, cabe à comunidade da saúde coletiva se engajar não somente nos debates e análises sobre este contexto, mas também na incidência política para que esse erro histórico seja superado.

Publicado originalmente na Cadernos de Saúde Pública, 35 nº.2, Rio de Janeiro, Fevereiro 2019

Referências

1. Brasil. Decreto nº 7.272, de 25 de agosto de 2010. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada, institui a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – PNSAN, estabelece os parâmetros para a elaboração do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, e dá outras providências. Diário Oficial da União 2010; 26 ago.

2. High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition. Nutrition and food systems. Rome: High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition, Committee on World Food Security; 2017.

3. Lang T, Barling D, Caraher M. Food politics: integrating health, environment and society. Oxford: Oxford University Press; 2009.

4. Leão M, Maluf RS. A construção social de um sistema público de segurança alimentar e nutricional: a experiência brasileira. Brasília: Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos; 2012.

5. Brasil. Lei nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Diário Oficial da União 2006; 18 set.

6. Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Seminário de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional. Relatório final. Brasília: Presidência da República; 2014.

7. Brasil. Medida Provisória nº 870, de 1º de janeiro de 2019. Estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios. Diário Oficial da União 2019; 1º jan.

8. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota de representantes da sociedade no Consea sobre a Medida Provisória nº 870. https://abrasco.org.br/outras-noticias/movimentos-sociais/nota-de-representantes-da-sociedade-no-consea-sobre-a-medida-provisoria-no-870/38860/.

9. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota Abrasco em defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada. https://abrasco.org.br/outras-noticias/notas-oficiais-abrasco/nota-da-abrasco-em-defesa-do-direito-humano-a-alimentacao-adequada-nao-a-extincao-do-consea/38848/.

10. Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar. Sociedade civil do Consea publica nota contra extinção do coselho. https://fbssan.org.br/2019/01/consea-esta-ausente-no-novo-governo/.

11. Projeto Reaja. Apresentação de Nota Técnica sobre a extinção do Consea Nacional em razão da nova estruturação da Administração Pública nos termos da Medida Provisória n. 870, de 01 de Janeiro de 2019. https://projetoreaja.org/2019/01/03/apresentacao-de-nota-tecnica-sobre-a-extincao-do-consea-nacional-em-razao-da-nova-estruturacao-da-administracao-publica-nos-termos-da-medida-provisoria-n-870-de-01-de-janeiro-de-2019/.

12. Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável. Manifesto pela não extinção do Consea. https://alimentacaosaudavel.org.br/manifesto-pela-nao-extincao-do-consea/.

13. Rede Evangélica Nacional de Ação Social. Em nota, RENAS se posiciona sobre extinção do Consea. http://renas.org.br/2019/01/05/em-nota-renas-se-posiciona-sobre-extincao-do-consea/.

14. FIAN International. Bolsonaro shuts down National Council for Food Security and Nutrition. https://www.fian.org/en/news/article/bolsonaro_shuts_down_national_council_for_food_security_and_nutrition/.

15. Recine E, Pacheco MEL, Maluf RS, Menezes F. Extinção do Consea: comida de verdade e cidadania golpeadas. https://diplomatique.org.br/extincao-do-consea-comida-de-verdade-e-cidadania-golpeadas/.

Associe-se à ABRASCO

Ser um associado (a) Abrasco, ou Abrasquiano(a), é apoiar a Saúde Coletiva como área de conhecimento, mas também compartilhar dos princípios da saúde como processo social, da participação como radicalização democrática e da ampliação dos direitos dos cidadãos. São esses princípios da Saúde Coletiva que também inspiram a Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde, o SUS.

Pular para o conteúdo