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A face da iniquidade na imunização contra a Covid-19 na A. Latina – Artigo de Paulo Buss e Luis Eugenio de Souza

Paulo Buss* e Luis Eugenio de Souza**

Foto: Flickr/SESAI

A permanência da América Latina como um dos epicentros da pandemia pela Covid-19 no mundo e o aparecimento de uma variante aparentemente mais contagiosa do Sars-Cov 2 na Amazônia intensificaram a luz vermelha que já se encontrava no radar das autoridades e cientistas da região e colocaram desafios ainda maiores para a diplomacia da saúde e da ciência e tecnologia regionais.

De fato, estamos, de um lado, diante necessidade premente da vacinação dos quase 600 milhões de latino-americanos para que se reduzam adoecimentos e mortes pela Covid-19 na região. De outro, é necessário reorganizar a cooperação internacional regional para um vantajoso enfrentamento conjunto da enfermidade, em todos seus aspectos e dimensões.

Além das medidas de assistência aos enfermos e vigilância epidemiológica (rastreamento de casos, testes e isolamento de contatos), o controle efetivo da pandemia de Covid-19 na América Latina exigirá o desenvolvimento da estratégia de vacinação sistemática, visando garantir que uma grande parte da população de cada país receba a vacina.

De forma incoerente com este princípio epidemiológico básico, alguns países e regiões desenvolvidos estão adquirindo mais vacinas do que o necessário para cobrir suas próprias populações. Com efeito, Estados Unidos, Canadá e União Europeia, por exemplo, com apenas 14% da população mundial, já compraram 48% dos 8,6 bilhões de doses disponíveis das vacinas mais promissoras. Com isso, minam a capacidade dos países de renda baixa e média, ou os instrumentos intergovernamentais, como os da Organização Mundial da Saúde (OMS), de adquirir vacinas suficientes para promover a imunidade coletiva, inclusive na América Latina.

A menos que os governos e a indústria farmacêutica tomem medidas urgentes para garantir a produção de doses suficientes da vacina contra a Covid-19, a maioria dos países latino-americanos contará apenas com as doses disponibilizadas por meio do Covax Facility, o mecanismo liderado pela OMS, e só será capaz de vacinar uma em cada cinco pessoas até o final de 2021. Na região, apenas Chile e México adquiriram doses suficientes das vacinas mais promissoras para cobrir toda a sua população e três outros países têm uma cobertura potencial maior do que a metade de seus habitantes: Peru (74%), Brasil (63%) e Argentina (53%), de acordo com o Velocímetro de Lançamento e Escala da Duke University (USA).

Vale acrescentar que, sem o acesso e a utilização equitativa das vacinas em toda a América Latina, a economia regional não se recuperará tão cedo, causando maior sofrimento humano e mortalidade prematura. Em informe recente, o próprio Banco Mundial afirma que a melhora da situação econômica na América Latina dependerá do controle da pandemia, o que está condicionado ao acesso equitativo às vacinas.

Para proteger a vida das pessoas, uma estratégia de imunização eficaz e segura contra a Covid-19 deve ser considerada bem público global e regional, e as vacinas devem ser produzidas em volumes maiores, distribuídas de forma equitativa entre os países e fornecidas sem nenhum custo para o usuário. Isso pode ser alcançado com a suspensão dos direitos de propriedade intelectual para vacinas, testes e tratamentos relacionados à Covid-19, o compartilhamento aberto da tecnologia e o financiamento adequado do Covax Facility. Os países desenvolvidos e ricos deveriam interromper acordos bilaterais, compartilhar as vacinas compradas em excesso e apoiar os esforços da OMS, além de investir no fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde dos países em desenvolvimento. Assim, os governos estariam cumprindo suas obrigações com os direitos humanos e promovendo, ao invés de impedir, o acesso mundial à vacina.

Na semana de 18 a 23 de janeiro, reúne-se virtualmente o Comitê Executivo da OMS, corpo diretivo da agência, composto por 34 países de todas as regiões do mundo, com mandatos de três anos. Das Américas, são membros do Comitê: Argentina, Chile, Colômbia, Granada, Guiana e Estados Unidos. O presidente do Comitê é o dr. Harsh Vardhan, Ministro da Saúde da Índia. Uma das funções primordiais do Comitê é preparar a agenda da Assembleia Mundial da Saúde, que reúne em maio de cada ano todos os 193 Estados-Membros da Organização para deliberar sobre os temas de saúde de interesse global.

Como não poderia deixar de ser, um dos pontos prioritários da agenda deste ano é a preparação e resposta frente a emergências de saúde pública, incluindo: a resposta à Covid-19; o trabalho da OMS em emergências sanitárias; o fortalecimento da preparação e resposta da OMS frente a emergências mundiais; a aplicação do Regulamento Sanitário Internacional; saúde mental no contexto da pandemia; entre outros temas.

Preocupados com a enorme iniquidade no acesso às vacinas nos países menos desenvolvidos, o que inclui países latino-americanos, o Movimento pela Equidade Sustentável em Saúde – que reúne entidades globais de ciências, profissionais de saúde e sociedade civil – representado pela Federação Mundial das Associações de Saúde Pública, enviou carta aberta aos membros do Comitê Executivo da OMS pedindo que adote as seguintes providências:

Apoiar a proposta apresentada pela África do Sul e Índia ao Conselho TRIPS da Organização Mundial do Comércio, solicitando a renúncia dos direitos de propriedade intelectual aplicáveis ​​a vacinas, testes e tratamentos relacionados à Covid-19.

Garantir que as empresas farmacêuticas que produzem vacinas contra a enfermidade compartilhem abertamente sua tecnologia e propriedade intelectual, por meio do Covid-19 Technology Access Pool da OMS, visando aumentar a disponibilidade de vacinas seguras e eficazes.

Apoiar os esforços da OMS para garantir o acesso equitativo às vacinas contra a Covid-19 em todo o mundo, incluindo o financiamento total do Covax Facility. Em resposta ao apelo do Diretor-Geral da OMS, fabricantes e países devem fornecer vacinas através do Covax, inclusive doando parte das doses excessivas de vacinas já adquiridas, além de cessar os acordos bilaterais com empresas de vacinas.

Apoiar financeiramente a OMS e investir no fortalecimento dos sistemas nacionais de saúde, incluindo programas de imunização sustentáveis, o que abarca processos de cadeia de frio viáveis ​​para todos os países, treinamento de profissionais de saúde para distribuição e aplicação de vacinas, e outras medidas necessárias para um processo eficaz e eficiente de vacinação.

Exigir que os países de alta renda se abstenham de prejudicar o acesso a vacinas em outros lugares, o que estão fazendo ao adquirir mais doses de vacina do que o necessário, ao mesmo tempo em que bloqueiam os esforços da OMC no sentido da renúncia aos direitos de propriedade intelectual relacionados à Covid-19.

Toda esta argumentação está baseada em posições exaustivamente defendidas (pelo menos no plano retórico) em declarações de países (aliás, muitos deles contrariando estas posições ao ‘avançarem’ sem pudor sobre as vacinas disponíveis) feitas na Assembleia Geral das Nações Unidas (UNGA) e na Assembleia Mundial da Saúde (WHA), respectivamente: Resolução UNGA A/RES/75/130[1], intitulada “Global Health and Foreign Policy” e Resolução WHA73.1, intitulada “COVID-19 response[2].

Por fim, é importante ter em mente, como afirmou o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom,  “nenhum país é excepcional nem deve furar a fila e vacinar toda a sua população, enquanto outros países permanecem sem fornecimento da vacina”.

A pandemia, como problema de saúde global, tem mostrado que toda a estrutura de governança global e regional deve se mobilizar em função da mesma, exatamente em um momento no qual se observa significativa fragilidade do multilateralismo. A diplomacia da saúde e a cooperação, em um cenário pandêmico, se converte em um imperativo, já que existe necessidade de gerenciar os riscos de saúde que se espraiam dentro e para fora dos países; de considerar os determinantes mais amplos da saúde, a partir de uma perspectiva governamental integral; e de incluir, formal e informalmente, um conjunto diversificado de interlocutores e interesses, coordenando atores estatais e não estatais.

Esta interpretação vem bem a calhar para o caso específico da Amazônia que, além de ser considerada um ‘berçário de arbovírus’, por conta de suas características geoclimáticas, tem passado por um processo intenso de imigração em massa, exemplificado pelos fluxos migratórios oriundos do Haiti e mais recentemente da Venezuela, tornando ainda mais complicada a já complexa realidade epidemiológica na região.

Para enfrentar a pandemia na Pan-Amazônia, ameaçada com a circulação em larga escala da nova variante do vírus detectada na região e para evitar o surgimento de novos coronavírus com potencial pandêmico e outras enfermidades emergentes na grande floresta úmida compartilhada por oito nações, devem ser mobilizados todos os esforços dos países e organismos da região, a exemplo da Organização do Tratado da Cooperação Amazônica (OTCA) e Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), CEPAL, ministérios da saúde, institutos nacionais de saúde e sociedade civil, de modo que sejam capazes de organizar uma resposta urgente e efetiva contra as ameaças multidimensionais vigentes.

Acima de qualquer disputa política ou ideológica deve estar a proteção e promoção da saúde dos 600 milhões de latino-americanos, que se encontram mergulhados na mais profunda crise sanitária e, mesmo econômico-social que se tem notícia. Acionar mecanismos de cooperação internacional e da diplomacia da saúde e ciência e tecnologia deve ser prioridade dos países da região, para que o mais rápido possível possamos superar a atual situação pandêmica, organizar as ações públicas de proteção social e restaurar de forma segura e ambientalmente sustentável as atividades econômicas na região.

*Paulo M. Buss é professor emérito e diretor do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz); presidente da Alianza Latino-americana de Salud Global (ALASAG); e membro Titular da Academia Nacional de Medicina do Brasil.

**Luis Eugenio de Souza é professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia; presidente-eleito da World Federation of Public Health Associations (WFPHA); presidente da Abrasco (2015-2018).

Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil em 19 de janeiro de 2021.

[1] United Nations General Assembly (2020). Global health and foreign policy: strengthening health system resilience through affordable health care for all. Acesso: https://undocs.org/en/A/RES/75/130

[2]World Health Assembly (2020). COVID-19 response. Acesso: https://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA73/A73_R1-en.pdf

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