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A Integralidade no SUS: ameaças no Ar

Reinaldo Guimarães

Dos três alicerces que definem o SUS, a integralidade é o que possui a maior necessidade de regulamentação. Cuidar da saúde de todos os cidadãos (universalidade) possui um sentido unívoco, ausente de ambiguidades. Versa sobre quem deve ter acesso aos cuidados. Cuidar da saúde de todos de modo equânime (equidade) trata de um objetivo a ser perseguido cotidianamente, um norte político e moral que não suporta facilmente uma regulamentação por via de normativa formal. Ele trata de como o cuidado deve ser prestado. Já o conceito de integralidade necessita de estrita regulamentação, pois trata de definir o que deve constar da cesta de cuidados aos cidadãos. E essa regulamentação é tão mais necessária quanto mais intensa for a dinâmica das novas tecnologias de saúde postas no mercado, haja vista o aumento do impacto financeiro das mesmas sobre o orçamento dos sistemas, bem como o crescimento dos danos potenciais provocados por seu uso não racional.

Após 1988, a regulamentação da integralidade no Brasil teve uma trajetória peculiar. Foi garantida enquanto conceito fundador do sistema pela Constituição Federal e necessitou ser regulamentada pela Lei 8.080/1990, que criou o SUS. Entretanto, essa Lei praticamente repetiu a disposição constitucional, o que terminou por deixar aos gestores públicos a tarefa de conduzir a imposição da integralidade mediante normas infralegais, em especial por portarias. Essa situação revelou-se satisfatória até meados dos anos 2000, quando irrompeu o que pode ser denominado a “epidemia” de judicializações na saúde.

A partir daí, a esfera judicial de primeira instância passou a ser invadida por ações individuais para o fornecimento de bens e serviços de saúde ausentes da cesta de itens autorizados pelo SUS, principalmente medicamentos. Na ausência de uma norma legal e, por vezes, mal orientados por médicos e advogados, os magistrados remetiam-se à disposição constitucional que reza que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado e concediam quase sempre a tutela antecipada ao demandante, onerando a execução financeira do SUS nas três esferas de governo. Nos primeiros anos, a epidemia atingiu quase exclusivamente O SUS, mas logo a saúde suplementar foi contaminada pelo problema. Em 2009, chamado a pacificar o tema o STF, após audiências públicas, em decisão ainda não vinculante optou por recomendar o respeito aos itens constantes das listas do SUS abrindo, no entanto, exceções sempre que houvesse risco de vida ao demandante. Tal decisão, infelizmente, não teve o condão de arrefecer o desenvolvimento da epidemia. Em decisões mais recentes, algumas com caráter vinculante, o STF praticamente repetiu o teor da decisão de 2009, determinando o respeito aos itens constantes nas listas e protocolos do SUS, mas estabelecendo muitas exceções.

Em 2007 começaram a tramitar no Congresso Nacional dois projetos de lei com o objetivo de construir a norma legal faltante na Lei 8.080/1990 com respeito à regulamentação da integralidade. O resultado foi a promulgação da Lei 12.401/2011, que “Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS”. Em outros termos, a lei regulamenta o conceito de integralidade no SUS. Em resumo, essa lei preceitua: quais bens e serviços podem ser fornecidos pelo SUS e em quais circunstâncias eles podem ser fornecidos; um conjunto de deveres para o MS, sendo o mais importante a criação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC). Infelizmente, no que respeita a judicialização, a Lei 12.401 não foi eficaz. As alargadas exceções admitidas pelo STF resultaram na continuidade da epidemia, que ficou mais concentrada em medicamentos de muito alto custo, alguns até mesmo sem registro na ANVISA.

Mas, no que mais importa para este texto, a Lei foi muito bem-sucedida quanto à criação da CONITEC. Ela foi regulamentada pelo Decreto 7.646/2011 e é composta por 13 membros, sendo sete pertencentes ao Ministério da Saúde, dois indicados por agências reguladoras (ANVISA e ANS), um do CONASS, um do CONASSEMS, um do Conselho Nacional de Saúde e um do Conselho Federal de Medicina. Suas atribuições são extensas, mas em resumo ele é um órgão auxiliar do Ministro da Saúde no que se refere à incorporação de tecnologias (bens, serviços e procedimentos) no SUS. Toma suas decisões contando com a colaboração de uma extensa rede de grupos de pesquisa em universidades e institutos de pesquisa intitulada Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias de Saúde (REBRATS) inaugurada em 2008.

A CONITEC foi constituída para servir ao SUS e tem sido alvo de muitas pressões por parte daqueles que querem ampliar a cesta de produtos/serviços do SUS baseados em interesses comerciais, em particular a indústria farmacêutica. Entre 2012 e 2019, tomou pouco mais de 500 decisões, sendo cerca de 35% delas no sentido de excluir, não incorporar ou não ampliar o uso. As 65% restantes foram no sentido de incorporar, manter, atualizar protocolos/diretrizes e ampliar uso/indicação . Talvez a quantidade de decisões positivas seja excessiva, mas a razão de apontar números aqui destina-se apenas a registrar a atuação de um órgão 100% governamental cumprindo sua missão, que no meu ponto de vista deve ser privativa do gestor federal do SUS. Afinal, se levarmos em conta os programas da assistência farmacêutica, do cuidado oncológico e de outras doenças crônicas não transmissíveis, as decisões da CONITEC modulam as despesas da maior parte do orçamento do Ministério da Saúde.

As ameaças sugeridas no título deste texto decorrem de conversações existentes no sentido de modificar o mecanismo de incorporação tecnológica no SUS, com a criação de um organismo externo ao Ministério da Saúde que absorveria as funções da CONITEC e, talvez, do órgão que regula os preços dos medicamentos no Brasil – a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), também pertencente ao Ministério da Saúde e cuja secretaria-executiva está localizada na ANVISA. Ambos são instâncias reguladoras de tensões entre a dinâmica dos complexos de serviços e industrial de saúde e o uso racional do que produzem pelos usuários do SUS.

Tanto quanto a CONITEC, a CMED também ocupa uma posição estratégica na execução da política pública de saúde e, tal como aquela, está sob permanente ataque da indústria farmacêutica que trabalha permanentemente para extinguir o controle de preços de medicamentos no país. Da mesma forma que na CONITEC, é possível criticar os critérios que têm governado o estabelecimento dos preços máximos dos medicamentos e que resultam em limites por vezes muito acima dos preços já praticados nos mercados público e privado. Entretanto, assim como no caso da CONITEC, nada justificaria retirar a CMED do estrito controle governamental.

Não sabemos em que pé estão essas conversações e se de fato virão a gerar decisões que visem afrouxar o controle do Ministério da Saúde sobre esses dois entes estratégicos no nosso SUS. No entanto, creio que devemos estar vigilantes para que isso não aconteça.

*Reinaldo Guimarães é vice-presidente da Abrasco e pesquisador associado ao Núcleo de Bioética e Ética Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NUBEA/UFRJ). 

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