A pandemia da covid-19 tem sido emblemática para a saúde do Brasil, independentemente do acerto ou não das medidas de isolamento social. Antes da pandemia, o SUS ocupava protagonismo no debate político às avessas do debate atual. Os arautos das políticas liberalizantes diziam que o SUS não cabe no Estado brasileiro e defendiam uma política de cobertura regulada de acordo com a capacidade financeira de cada cidadão como expresso na proposta de orçamento enviada ao Congresso Nacional.
Com a crise, a situação epidemiológica do país se agrava rapidamente, num contexto em que a subnotificação e a falta de testes nos impedem de saber a verdadeira dimensão e a evolução da covid-19. Estamos, provavelmente, na fase inicial da subida do número de casos, de modo que qualquer cenário realista prevê, em pouco tempo, o colapso da oferta de leitos de UTIs do SUS em algumas localidades, em meio a outras doenças sazonais, que acometem a população e, igualmente, podem necessitar de apoio hospitalar, como a dengue.
Neste momento dramático, considerando os problemas “rotineiros” da população e o enfrentamento da pandemia, as autoridades governamentais não podem se omitir diante do desfinanciamento da saúde promovido pela Emenda Constitucional (EC) 95, que estabeleceu teto declinante de gastos por 20 anos, com perdas estimadas de R$ 22,5 bilhões para o SUS, desde 2018. Tendo a defesa da vida como eixo central das políticas públicas, a sociedade brasileira tem a expectativa de que todas as forças políticas, a despeito de matizes ideológicas, tenham a grandeza de construir um acordo suprapartidário, em que novos recursos destinados ao SUS sejam permanentes, em contraponto às consequências econômicas e sociais da pandemia, que não se limitarão a 2020.
Sem permitir malfeitos na área financeira, temos uma oportunidade para avançar nessa direção: o Congresso Nacional está discutindo a PEC 10/2020, que institui o regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações. A proposta suspende os expedientes da Lei de Diretrizes Orçamentárias, da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Regra de Ouro, mas mantém inalteradas as regras fiscais após o decreto de calamidade pública.
Se é importante preservar a vida das pessoas e a qualidade do gasto com lisura e transparência dos contratos, coibindo o sobrepreço e o superfaturamento , o problema reside na constatação de que a vigência de tais regras, especialmente a EC 95, implicará enorme perda de recursos para o SUS a longo prazo, com consequente atenção de baixa qualidade para os usuários. A necessidade por recursos não será meramente transitória, senão, vejamos: redução das receitas de estados e municípios, que são os responsáveis diretos pela execução das políticas de saúde e respondem por cerca de 57% do gasto público em saúde; expulsão via aumento de preços e inadimplência dos usuários do mercado de planos de saúde, em função do desemprego e da perda de renda; e demandas represadas na rede pública, que tendem a aumentar em razão da crise sanitária.
Apesar disso, convém lembrar que o governo encaminhou o Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias declarando que o teto de gastos será a principal âncora fiscal e, portanto, deve encaminhar o Projeto de Orçamento Anual com o piso federal da saúde congelado. Isso significa dizer que, em termos nominais, os recursos empenhados em 2021 seriam menores do que os executados este ano.
Diante do quadro que se vislumbra, do aumento da desigualdade social, da pobreza e do desemprego, o alerta que se faz à sociedade brasileira é que o espírito de intensa solidariedade ente os desiguais, tão presente nesta crise, irmane para impedir o grave equívoco da aprovação de proposta orçamentária nos moldes propostos. Alternativa viável seria propor, por meio da PEC 10/2020, um piso emergencial, revogando o congelamento da aplicação mínima em saúde, estimado a partir dos valores executados em 2020, acrescidos dos créditos extraordinários e corrigidos pelo IPCA, assegurando mais recursos para a saúde pública no ano que vem.
A democratização da saúde, promovida pela Constituição de 1988, representou verdadeiro avanço do processo civilizatório. Em plena epidemia, não devemos abrir mão desse direito social, sob pena de colocar em risco a vida de milhares de brasileiros para sustentar uma política de austeridade fiscal danosa, que se encontra sob fogo cruzado nas principais economias do mundo, inclusive pelos que a defendiam como única alternativa até bem pouco tempo atrás.
José Agenor Álvares da Silva é pesquisador da Fiocruz e integrante do Grupo Temático Vigilância Sanitária (GT Visa/Abrasco), foi ministro da Saúde e diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anivsa). Carlos Octávio Ocké-Reis* Sanitarista é pesquisador do Ipea e vice-presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) – Confira o artigo original, publicado no Correio Braziliense em 20 de maio de 2020.