Quando pensamos que contra o SUS já vimos tudo, concluímos que muito poderemos ver ainda. Não bastou o seu subfinanciamento originário e crônico; a sua não priorização pelos Governos desde 1990; a sua dificuldade de se organizar conforme determina a Constituição (27 anos); o centralismo federal; o descumprimento das normas dos critérios de rateio dos recursos entre os entes federativos; a judicialização, pêndulo que se movimenta mais em desfavor do SUS do que em seu favor, dentre outros problemas crônicos. Neste final de 2014 e inicio de 2015 tivemos duas derrotas que serão sentidas na garantia do direito à saúde em curto espaço de tempo.
A primeira, a PEC 368, hoje EC 86, de 2015, a qual dispõe sobre o orçamento impositivo e o percentual de recursos da União vinculado à saúde, o qual deveria ter como valor mínimo, o equivalente a 1o% de suas receitas correntes brutas e que ficou constitucionalizado em 15% das receitas correntes líquidas (em cinco anos), com grandes perdas para o orçamento da saúde. E a sua constitucionalização será um novo problema, uma vez que antes estava a cargo de lei complementar.
A segunda, a Lei 13019, de 2014, que abriu a assistência à saúde ao capital estrangeiro, numa afronta à vedação constitucional inserta no art. 199, § 3º, que proíbe tal participação, ainda que crie algumas exceções. Este artigo 141 da lei está sendo arguido de inconstitucionalidade pelas entidades de defesa do SUS. Surge agora no cenário legislativo da Câmara Federal, a PEC 451, de 2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, alterando o art. 7º da Constituição, inserindo novo inciso, o XXXV, o qual obriga todos os empregadores brasileiros a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde, excetuados os trabalhadores domésticos. E não devemos nos esquecer de que para propor uma PEC há que se ter assinatura de 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. Não foram poucos os que a endossaram…
Sua justificativa é a de que o art. 196 da CF (garantia do direito à saúde) como norma programática que é, ou seja, de eficácia limitada, a qual dependeria de regulamentação que disponha sobre seus limites, poderá postergar esse direito ao trabalhador urbano e rural, ao qual deve ser garantido serviço de assistência médica como direito fundamental do trabalhador previdenciário. Apenas para lembrar, o STF já decidiu que a norma do art. 196 não é de eficácia limitada, mas sim imediata, assim como a maioria dos constitucionalistas nesse país; esse lema de eficácia limitada já passou. Mais uma página virada. Já temos 27 anos de Constituição e o SUS é uma realidade jurídica, política e social.
Tal proposta de alteração à Constituição gera uma antinomia jurídica por romper com o princípio consagrado no art. 196 que estatui ser a saúde um direito de todos e dever do Estado garantido mediante políticas sociais e econômicas que reduzam o risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. De repente a saúde integral da Constituição se segmenta de forma absurda na PEC, tanto quanto ao seu usuário e quanto ao seu conceito.
Garantir planos de assistência médica ao trabalhador urbano e rural (nem se faz mais esta distinção) é revisitar o INAMPS em sua pior forma: um grande INAMPS privado, de operadoras e seguradoras de planos de saúde que garantiriam aos trabalhadores filiados ao regime geral da previdência social, assistência privada médica.
As aberrações políticas, jurídicas e sanitárias são tantas que se torna difícil expô-las de modo resumido, que é o nosso propósito neste texto. A primeira afronta é ao art. 196 da CF que garante o direito à saúde em seus mais abrangentes termos: qualidade de vida (fatores determinantes e condicionantes da saúde) e ações e serviços de proteção e recuperação da saúde. O primeiro mandamento refere-se às politicas sociais e econômicas que evitem o agravo à saúde, ou seja, que se permita que a saúde floresça sempre; o segundo, ações e serviços públicos de acesso universal e igualitário (a todo cidadão, sem distinção) que proteja a sua saúde e a recupere quando agravada.
Garantir como direito fundamental do trabalhador previdenciário plano de saúde privado de assistência médica é voltar à velha luta de reduzir saúde à assistência médica, além de ferir o princípio da igualdade: saúde para todos, direito fundamental de acesso universal! É criar distinção entre cidadãos: trabalhador com vínculo de emprego; sem vinculo; não trabalhador, aposentado e assim por diante.
Essa discussão foi superada pela Constituição de 88, e teve como protagonistas dos debates, durante os anos 70-80, o movimento da Reforma Sanitária e os movimentos sociais que lutaram por um estado de bem estar social que garantisse saúde a todos! De forma universal e igualitária; saúde sem dicotomia entre o preventivo e o curativo centrado apenas no médico.
Se tal medida prevalecer haverá um SUS definitivamente segmentado, atrasado e arrasado, uma vez que quanto mais o segmentam por categoria de pessoas e modelo assistencial, mais pobre e precário ele resultará.
Além do mais há questões jurídicas relevantes a ser consideradas, como a da antinomia jurídica mencionada acima; a da inconstitucionalidade da proposta por ferir o disposto no art. 196 da CF que traz concepção de direito social e individual de acesso universal e igualitário de responsabilidade estatal; concepção de saúde que retoma o conceito do anterior Sistema Nacional de Saúde, da lei 6229, de 1975, revogado pela lei 8080, de 1990. Essa PEC é um retrocesso aos avanços sociais neste país, à diminuição das desigualdades; um caminho para transformar o SUS em serviços de cobertura universal. Trata-se sem dúvida de uma proposta constitucional inconstitucional.
Esse sistema inampiano, agora privado, é página virada na década de 80, não fazendo mais o menor sentido propor a redução do papel do SUS de garantia do direito à saúde público, universal e igualitário. Propor a sua fragmentação quanto ao acesso, uma vez que os trabalhadores terão plano privado para garantir parcialmente o seu direito à saúde, é retrocesso, atraso e desrespeito à Constituição. É mais uma tentativa de transformar o SUS num sistema complementar aos planos privados de saúde; um sistema pobre para pobre, o qual cria categoria de cidadão e aprofunda as nossas já aberrantes desigualdades sociais. Mais uma?
A quem interessa tal mudança drástica na nossa Constituição e no nosso SUS? Não podemos nos esquecer do grave duo legislativo no apagar das luzes de 2014: baixo financiamento e abertura da assistência à saúde ao mercado nacional e internacional. Teremos a tríade: baixo financiamento, capital estrangeiro na assistência de planos de saúde, obrigatoriedade de todos os empregadores garantirem um plano de saúde para seus trabalhadores.
Com as emendas impositivas vamos retirar um percentual do orçamento da saúde – que já estava lá, não é novo – o qual deveria estar vinculado ao planejamento e plano de saúde, com metas, e ser transferidos aos entes federativos. Esse mesmo recurso que já pertencia aos entes federativos para financiar a sua saúde sai para retornar pelas mãos dos parlamentares aos seus donos originários, mediante escolhas e negociação e não mais pelos interesses de saúde da população consagrados nos planos de saúde.
E ainda os recursos do Pré-sal, que seriam um adicional, estarão incorporado aos valores mínimos da União, que nunca passam do mínimo, ainda que por piso não se possa compreender teto. Piso é base e teto é fim.
Na verdade, estão a solapar a maior política pública de justiça social do país: o SUS, universal e igualitário. A maior política inclusiva brasileira que chegou tarde e cedo querem retalha-la.
* Lenir Santos é doutora em Saúde Pública pela Universidade de Campinas; advogada em gestão pública e direito sanitário, e coordenadora do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa)