Nesta semana, dados divulgados pelo Boletim Epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo mostram que o risco de negras e negros morrerem pela Covid-19 é 62% maior em relação à população branca na capital paulista; e pensadores negros do ambiente acadêmico brasileiro foram convocados para desdobrar esse triste quadro pelos dois mais tradicionais veículos da imprensa paulistana. O jornal O Estado de S. Paulo produziu, no dia 4 de maio, matéria que contou a participação de pesquisadoras negras que expuseram suas ideias no painel População negra e a Covid-19, veiculado na Ágora Abrasco de 15 de abril, enquanto a Folha de S. Paulo trouxe, no dia 13 de abril, o artigo “Por que a Covid-19 é tão letal entre os negros? “, assinado por Thiago Amparo, professor da FGV-SP. O espaço dado a essas jovens vozes negras que passam a ser ouvidas é um sinal dos tempos que reforçam um lema (que deveria ser) básico:”Nada sobre nós, sem nós”.
O documento divulgado em São Paulo traz dados que consideram o número de óbitos, suspeitos e confirmados, por Covid-19, utilizando a classificação de raça/cor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pauta esta também abraçada pela Abrasco, que enviou Carta ao Ministério da Saúde pedindo desdobramentos da informação raça/cor nos sistemas de informação da Covid-19 em prol de ações de saúde à população negra e à pesquisa. Os números reforçam mais uma vez que a causa de mais negros morrerem pela Covid-19 está nas questões socioeconômicas, como saneamento básico precário, insegurança alimentar e dificuldade de acesso à assistência médica, que aumentam o risco de adoecer e morrer.
A matéria sobre o tema publicada pelo Estadão entrevistou as três integrantes do Grupo Temático Racismo e Saúde da Abrasco participantes da Ágora: Joilda Silva Nery, biomédica e docente do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA); Márcia Alves, pesquisadora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e técnica da Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro (SES/RJ); e Emanuelle Goes, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para a Saúde (Cidacs/Fiocruz) e do ISC-UFBA, e também a médica Denize Ornellas, diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC).
No painel da Ágora Abrasco, Márcia abordou a falta de dados considerando raça/cor nos boletins epidemiológicos sobre o coronavírus. “Nós, pessoas negras, precisamos estar em todos os espaços, documentos, normas, pesquisas, porque representamos a maioria. Não dá para não se incomodar com os boletins epidemiológicos de uma pandemia que não aborda raça/cor”, afirmou.
A dificuldade no acesso aos serviços de saúde aumenta o risco de complicações e óbitos, e a população negra encontra esse obstáculo não só em tempos de pandemia também foi destacada por Márcia ao Estadão. Ela citou o estudo do IBGE “Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população”, de 2019, que indica a dificuldade da população negra no exercício do direito à saúde e observou que o problema é estrutural. “A população negra demonstrou os piores indicadores no que tange à estrutura econômica, mercado de trabalho, padrão de vida e distribuição de renda e educação”, enumerou. “Esses indicadores corroboram o racismo, que é um determinante em saúde. E isto está refletido no boletim epidemiológico da prefeitura de São Paulo”, completou.
Joilda Nery ressaltou na sessão virtual dedicada à saúde da população negra que “a população negra não é homogênea e que tem segmentos expostos a diferentes riscos de adoecimento e morte” e destacou a condição da população que vive nas ruas, apresentando o trabalho de auxílio e diálogo que o ISC/UFBA tem feito, com o recolhimento de doações e a distribuição de kits básicos de higiene para a distribuição a pessoas em situação de rua na capital baiana. “A escassez material é uma das principais condições do racismo que estrutura a vida das pessoas em situação de rua. Como chegar a elas e pedir para lavarem as mãos?”
Ao Estadão, a docente do ISC/UFBA marcou que questões sociais e históricas ajudam a explicar a presença dos negros como grupo de risco da Covid-19. “Piores condições de vida e trabalho determinam o maior risco de adoecimento e morte, não apenas pela covid-19, mas também por outras doenças. A dificuldade de acesso aos serviços de saúde é um fator crucial para aumentar o risco de complicações e óbitos” disse Joilda.
Já Denize Ornellas defendeu no painel da Ágora Abrasco que é necessário pensar na saúde das pessoas entendendo os determinantes sociais e que é preciso lutar e criar condições para que todos possam se cuidar. “A entrada da Covid-19 entrou no Brasil pelos bairros mais nobres, e aí 20 dias depois chegou nos porteiros, manobristas e empregadas domésticas. O Estado precisa ser responsabilizado por renda mínima e segurança alimentar durante a pandemia”.
Na entrevista ao jornal paulistano, a médica mostrou como as diferenças nas condições do cuidado impactam na saúde. “Uma pessoa negra não consegue fazer o isolamento social quando está doente porque tem uma casa menor que as casas de classe média, com menos cômodos, um banheiro só e até falta de água. Com isso, uma pessoa infectada traz maior risco de contaminação das pessoas ao redor”, explicou Ornellas.
Emanuelle Goes, que coordenou a sessão virtual da Abrasco, abordou no Estadão a questão das comorbidades que atingem a população negra em maior número, como hipertensão, diabetes e doença falciforme. “A população negra (soma de pretos e pardos) apresenta maior exposição às morbidades elencadas para grupo de risco, como hipertensão, diabetes, obesidade e câncer”, argumentou. “Mas, antes de tudo, o racismo institucional neste contexto de pandemia vai agravar a situação das pessoas negras no momento da procura pelo serviços de saúde. A consequência disso é uma maior taxa de mortalidade para esse grupo racial”, concluiu.
Clique para assistir ao painel População Negra e a Covid-19, da Ágora Abrasco e, aqui, a matéria de cobertura da sessão.
Confira também o artigo da Folha de S. Paulo; e a matéria do Estadão.