A segunda metade do século XX é marcada por diversos eventos que favoreceram a entrada das mulheres no mercado de trabalho em praticamente todos os setores econômicos. A maior participação na força produtiva assim como os movimentos feministas e algumas iniciativas de organismos e entidades internacionais, como da Unesco e da TWOWS, foram essenciais para a entrada, cada vez maior, de mulheres nas Universidades. Nos EUA, país que tem tradição em realizar censos demográficos de sua população, dados oficiais mostram que, desde o final dos anos de 1960, houve crescimento no número de títulos concedidos às mulheres nos cursos da graduação e também nos diferentes níveis da pós-graduação, onde ocorre, a partir dos anos 2000, paridade com os homens, especialmente no doutorado. No Brasil, dados oficiais mostram cenário semelhante: em 1970, elas representavam 25,6% da população com título universitário, enquanto em 2012, passaram a representar 59,6%. Na pós-graduação, as mulheres, desde 2004, já superaram os homens em relação ao total anual de titulações no doutorado.
A despeito dos enormes avanços, ainda observam-se disparidades de gênero tanto na escolha pelas diferentes áreas de atuação e carreiras como na ocupação de cargos de chefia, com maiores salários e/ou de maior prestígio. Esse é um cenário presente em praticamente todos os países e setores, inclusive na ciência, onde estas disparidades recebem a denominação de segregação territorial e a segregação hierárquica.
Explicações para estas duas formas de segregação das mulheres na ciência vêm sendo investigadas há décadas por pesquisadores de diferentes áreas. As ciências sociais representam provavelmente a área com o maior espectro de abordagens, incluindo desde estudos de percepção de homens e mulheres de diferentes setores sociais sobre ciência e cientistas, até estudos sobre os fatores sociais e culturais que podem determinar a escolha da carreira científica e também favorecer o sucesso na ciência. Sobre este último aspecto, é vasta a literatura que investiga os efeitos da maternidade e do casamento no desempenho acadêmico-científico de mulheres e homens. Mesmo sem consenso, há fortes indícios que eventos sociais como estes têm, com mais frequência, efeitos negativos no desempenho de mulheres, estimado, por exemplo, pelo nível de publicações. Considerando que o desempenho é um propulsor no processo de ascensão na carreira científica, é fácil visualizar que as mulheres estariam em desvantagem.
Em 2009[1], um primeiro estudo do grupo que eu coordenava investigou se o desempenho de homens e mulheres de comunidade científica brasileira segue o padrão encontrado na literatura que, em geral, indica que mulheres têm uma menor contribuição que homens. Para superar o obstáculo da identificação do sexo dos autores, as abreviaturas dos nomes dos autores das publicações brasileiras da Web of Science foram automaticamente confrontadas com as também abreviaturas dos nomes e com o sexo dos pesquisadores cadastrados no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq. Este processo recuperou e atribuiu o sexo para cerca de 40% dos autores, que somaram quase 19 mil nomes. Entre os 100 autores mais produtivos, os autores homens foram a maioria; as mulheres autoras representam somente 14% neste grupo seleto. Ainda, na análise de distribuição acumulativa de publicações foi possível verificar que a probabilidade de encontrar autores com 50 ou mais publicações é quase quatro vezes maior para homens, o que corrobora que, de fato, homens estão entre os mais produtivos. No entanto, quando todo o restante da população é estudado, ou seja, cientistas com 50 ou menos publicações (são 90% do total), verifica-se que as chances de encontrar um autor homem são as mesmas que uma autora mulher. Esse primeiro conjunto de dados mostrou que, na comunidade científica brasileira, os homens eram mais produtivos que mulheres, o que corroborou a literatura internacional, cujo foco, em geral, tem sido limitado do ponto de vista da população estudada.
Tal como na maior parte dos países, ciência brasileira está concentrada nas mãos de poucas instituições, prioritariamente universidades e institutos de pesquisa do setor público. Estas instituições são responsáveis pela maior parte das pós-graduações que têm sido sistematicamente avaliadas, inclusive por sua produtividade. Partindo desta constatação, iniciei, em 2010, um projeto de pesquisa com foco na mulher docente-pesquisadora, aquela vinculada a um programa de pós-graduação no Brasil que assume múltiplas atribuições do ensino, da orientação de alunos e da pesquisa. Partindo dos relatórios de atividade, do Caderno de Indicadores da CAPES, verificou-se, para o ano de 2009, como os 52.294 docentes – pesquisadores, homens e mulheres, vinculados a um dos 2.247 programas de pós-graduações brasileiros, se envolvem em atividades como: “disciplinas na graduação”, “disciplinas na pós-graduação”, “orientações no mestrado”, “orientações no doutorado”, “número de artigos em periódicos”. Dados de um primeiro estudo[2] revelaram que, quando toda a população é considerada, homens e mulheres mostravam envolvimento semelhante nas diversas tarefas acadêmicas. No entanto, quando foi considerada a grande área de atuação dos docentes-pesquisadores, foi possível observar algumas diferenças. Chamou atenção as Ciências da Saúde, onde, apesar das diferenças não serem significativas em termos estatísticos, foi possível observar que mulheres tendem a assumir mais a tarefa de ensino “disciplinas na graduação”, enquanto os homens tendem a assumir mais a tarefa da pesquisa “artigos em periódicos”. Para contextualizar os dados, o projeto introduziu o conceito de capital científico, de Bourdieu. No modelo teórico, as tarefas foram ordenadas em um espectro que incluía muito a pouco de prestígio; a expectativa era que as mulheres teriam maior envolvimento com atividades de menor prestígio, como lecionar “disciplina na graduação”, as quais não rendem prestígio nem reconhecimento dos pares e, portanto, não rendem capital científico “puro”. Um desempenho como este que privilegia atividades de pouco prestígio para a ciência, poderia explicar o menor sucesso na carreira das mulheres, estimado, por exemplo, na ocupação de cargos de chefia e/ou de posições mais elevadas na estrutura acadêmica. Os dados das grandes áreas sugerem, assim, um tipo específico de divisão ou segregação de tarefas nas pós-graduações que pode ser considerado um mecanismo relevante para a manutenção da estrutura de poder vigente. Novas análises foram (e estão sendo) geradas considerando alguns recortes na população original e corroboram a segregação observada no trabalho pioneiro do grupo.
Todos os anos, os programas de pós-graduação enviam para a Capes dezenas de dados, de diferente natureza, sobre os docentes-pesquisadores a eles vinculados. A qualidade e a confiabilidade destas informações podem fazer a diferença no processo avaliativo. Dentre as informações, destacam-se as cinco melhores produções do programa, que, em tese, devem ser representativas da qualidade de toda a produção de seus docentes. Na maior parte dos casos, a escolha deste grupo seleto de publicações está nas mãos dos coordenadores de programas. É sobre esta informação, extraída dos Cadernos de indicadores da Capes, que passei a desenvolver, em 2015, um estudo piloto, buscando investigar se um mecanismo institucional – a escolha das melhores produções – promove igualdade ou reforça/mantem as disparidades de gênero no que tange o desempenho das mulheres[3]. Foram analisadas as autorias de 358 e 377 publicações, vinculadas a 91 e 100 programas de pós-graduação em 2009 e 2012, respectivamente, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todas indicadas como as “melhores produções” dos programas em cada um dos anos. Resultados preliminares indicam que os coordenadores tendem – conscientemente ou não – a indicar mais publicações de docentes-pesquisadores homens. Como a escolha pelas “melhores produções” é dos coordenadores, representantes formais das pós-graduações, esta decisão institucional parece reforçar as disparidades de gênero no caso estudado, a UFRJ. A proposta é ampliar as análises para áreas de conhecimento, além de introduzir outras variáveis, como contagem fracionada das autorias e o fator de impacto das “melhores produções.
Os exemplos desses estudos têm levantado informações relevantes e originais sobre o desempenho das mulheres na ciência que ajudam a conhecer os mecanismos que estão por trás da segregação vertical, aquela que força as mulheres, brasileiras ou não, a assumirem um papel periférico na ciência.
(Jacqueline Leta é professora da UFRJ e estuda diferentes aspectos da produção científica brasileira, com ênfase na presença e contribuição da mulher)
[1] Batista, P.D. ; Leta, J. Brazilian Authors’ Scientific Performance: Does Gender Matter?. In: 12th International Conference on Scientometrics and Informetrics, 2009, Rio de Janeiro. Proceedings ISSI 2009, 2009. v. 1. p. 343-353.
[2] Leta, J. ; Olinto, G.; Batista, P.D.; Borges, E.P. Gender and academic roles in graduate programs: analyses of Brazilian government data. In: 14th International Conference of the International Society for Scientometrics and Informetrics, 2013, Viena, Austria. Proceedings of the 14th Conference of ISSI. Viena: AIT Austrian Institute of Technology GmbH, 2013. v. 1. p. 796-810