Nosso planeta é um complexo mosaico multicultural e ao longo do tempo, a produção científica foi sendo construída a partir de um único modelo epistemológico, como se o mundo fosse monocultural, o que descontextualizou o conhecimento e não permitiu o conhecimento de outras formas de saber.
A partir deste pensamento, pontuado em todas as falas, José Francisco de Melo Neto, João Arriscado Nunes e Elisa Urbano Ramos transformaram o Debate Emergente “Epistemologias do Sul, Interculturalidade e Saúde Coletiva” num dever intelectual pela valorização da diversidade dos saberes para que a intencionalidade e a inteligibilidade das práticas sociais seja a mais ampla e democrática possível.
A Tenda Palmira Lopes recebeu os pesquisadores na manhã de sábado, 28 de setembro, naquela que foi a primeira atividade da programação científica do 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco, que aconteceu em João Pessoa. A moderação do Debate ficou sob a responsabilidade do professor Franklin Forte.
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José Francisco de Melo Neto é professor da Universidade Federal da Paraíba, e em sua fala evidenciou os elementos de uma razão permeada por um humanismo próprio, pautada sempre no outro, na alteridade: preocupações centrais de Melo Neto: – “O objetivo da ciência enquanto forma de conhecimento é ser prática social e transformação do mundo, porém a compreensão do mundo ainda é predominante europeia, portanto eurocentrista e despreza as demais razões. Esta razão arrogante, que se coloca como uma razão do note, gera outras razões impotentes bem no estilo farinha pouca meu pirão primeiro.”, pontuou Neto. O pesquisador questionou ainda como superar esta razão e trouxe o pensamento do professor conimbricense Boaventura de Sousa Santos para o debate: – “Mas como se dará a superação dessa razão? é aí que entra a razão cosmopolita de Boaventura pensando que todo o conhecimento científico natural é conhecimento científico. A educação popular e a saúde coletiva são movimentos que nos conduzem pra isso, formulando uma visão fora da mercantilização da ciência, promovendo as superações das hierarquias e por isso mantendo a ciência que promove a democracia e a emancipação das pessoas e não se entregue ao mercado. Precisamos nos alimentar desses modelos populares como uma metodologia da minha relação com o outro.”
O professor fez questão de retomar os pontos inicialmente colocados como linha condutora de sua fala: todo o conhecimento científico é natural portanto é social; todo conhecimento científico natural é um conhecimento científico local mas é também do mundo; todo conhecimento cientifico social, natural e local deveria se tornar um senso comum: – “Que todo conhecimento científico seja útil à promoção do outro, se não for assim a nossa razão popular cai, procuremos outros caminhos de superação do eurocentrismo sem se firmar como o único saber, não nos propomos a ser o único saber dominante, não, queremos apenas estar nos níveis dessas razões, dando sentido e direção ao futuro com forte impacto social.”, clamou Neto.
A pesquisadora Elisa Urbano Ramos é mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco mas se apresentou indígena mulher do povo Pankararu. Elisa trouxe em seu lugar de fala o pensamento dos movimentos sociais indígenas e em especial as pautas prioritárias na luta por direitos e igualdade das mulheres indígenas e qual seria o melhor modelo de saúde coletiva para seu povo. Elisa começou sua apresentação projetando uma fotografia do povo Pankararu na década de 30, registrada por Carlos Estevão de Oliveira, e a antropóloga passou a explicar: – “No meu povo tem pajé homem e pajé mulher também, portanto conhecedores e conhecedoras do nosso saber e ensinamentos e, saúde que vão acompanhando as gerações, num legado que vai sendo deixado pelos nossos ancestrais. O sistema de saúde na minha aldeia foi construído a partir de um contexto de harmonia, ou seja, no nosso sistema de saúde existem seres visíveis, não visíveis, animais, plantas, as crianças, os idosos, os espíritos. Compreender esse sistema é compreender uma rede de elementos que estão relacionados, num movimento complexo que demanda o entendimento das plantas, águas, matas e animais, na sua forma especial de cura e que atuam na cura das mazelas que aqui foram deixadas – e que continuam sendo deixadas pelo invasor, colonizador, golpista… como queiram chamar.”, salientou Elisa.
A pesquisadora reforçou a necessidade de bons serviços públicos de saúde para os indígenas: – “Até porque uma vez adquiridas mazelas, quem deixou essas mazelas é quem tem que tratar da cura delas! meus antepassados não tinham diabetes, hipertensão, e não estou falando de ancestrais mas de parentes que viveram há 50 anos. Nosso sistema de saúde feito da harmonia está sendo desintegrado enquanto espaço de vida. Existe uma epistemologia racista que considera os nossos saberes como folclore, que minimiza as nossas filosofias e as chama de cosmovisão, chama nossas artes de artesanato. Nossa educação vem de saberes passados na comunidade e se aprende mesmo é no chão das aldeias, nas histórias nos terreiros, nos rituais sagrados e nas cozinhas – nossas cozinhas não são sinônimos de subalternidade, são espaços de luta e de força porque o alimento é sagrado e parte do ritual.”, pontuou Elisa.
Fechando o debate, o investigador do Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, João Arriscado Nunes, analisou o debate que se trava na epistemologia contemporânea, os rumos da crítica da epistemologia enquanto projeto indissociável do projeto da ciência moderna e propôs algumas pontes entre essa crítica e a proposta de uma epistemologia do Sul global: – “A justiça cognitiva, indissociável da justiça social e da justiça ecológica, alimenta as respostas que emergem dessas lutas, exigindo o acesso aos saberes, meios e práticas da biomedicina, mas também o reconhecimento da diversidade de saberes e práticas de cura e de cuidado que existem no mundo. Procura-se, assim, contribuir para examinar e problematizar em chave intercultural os encontros entre a Saúde Coletiva e os saberes e práticas situadas do sofrimento e do cuidado. Assim se vão tecendo, de modo emergente, através de práticas colaborativas e não-extrativistas, novas experiências e ecologias do cuidado, através de encontros entre diferentes idiomas do sofrimento e saberes e práticas da terapia, da cura e do cuidar”, explicou Nunes.
O investigador português trouxe ainda sua visão sobre conceitos de Epistemologias do Sul e interfaces com a saúde coletiva; – “A monocultura da biomedicina se depara com as “outras” cosmologias e mundos, de medicinas, terapias e formas de cura, e se vão tecendo, de modo emergente, através de práticas colaborativas e não-extrativistas, novas experiências e ecologias do cuidado, através de encontros entre diferentes idiomas do sofrimento e saberes e práticas da terapia, da cura e do cuidar.”