Dados do Ministério da Saúde mostram maior número de suicídio entre adolescentes negros e mais mortes por consumo abusivo de álcool entre pessoas negras.
Aproximadamente 1 bilhão de pessoas foram diagnosticadas e convivem com algum transtorno mental no mundo. Três milhões de pessoas têm como causa morte o uso abusivo de álcool e a cada 40 segundos alguma pessoa é vítima de suicídio. Segundo a OPAS (Organização Pan-Americana de Saúde), no Brasil o campo da saúde mental é o mais desinvestido no âmbito da saúde pública.
Essa realidade, quando analisada à luz do marcador social raça/cor, revela que a saúde mental da população negra é pauta de primeira ordem. Segundo dados do Ministério da Saúde de 2012, na comparação das taxas de mortalidade (por 100.000 habitantes) devido ao uso de álcool, o percentual de pretos é de 5,93 e o de pardos 3,89, enquanto, o percentual de brancos é de 2,69 e o de amarelos, 0,86. Quando o tema é a taxa de mortalidade por suicídio em jovens, a situação se agrava: em 2016, a cada 10 suicídios em adolescentes, 6 ocorreram entre negros.
Historicamente, a população negra foi vitimada pela lógica eugenista e manicomial. A primeira delas tentou justificar, ancorada em pseudociência, a inferioridade de negros e negras; a segunda, por sua vez, promoveu não apenas a manicomialização deles em hospitais psiquiátrico (grande parte destes sem demandas e/ou diagnósticos que justificassem algum tratamento), mas, acima de tudo, a vinculação da população negra e seus costumes à loucura e periculosidade.
Em resposta a esse contexto racista, realizou-se entre agosto e setembro a campanha: Saúde Mental da População Negra Importa!, promovida pela Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) – ANPSINEP. A campanha ganhou as redes sociais e contou com o apoio de 260 instituições, entre elas universidades públicas e privadas; entidades de distintos movimentos sociais; programas de pós-graduados; conselhos de classe; sindicatos; serviços de saúde pública; organizações culturais e religiosas; coletivos independentes, entre outras. Durante os 30 dias, em meio à pandemia do novo coronavírus, seminários, debates e manifestos ganharam a cena virtual, chamando a atenção para uma temática pouco debatida dentro e fora do campo da saúde.
À vista disso, focalizar a saúde mental, em meio à pandemia no país com a maior quantidade de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas fora do continente africano, exige a compreensão do que o psiquiatra Frantz Fanon apontou e o filósofo Achille Mbembe assevera: a colonialidade propõe uma dinâmica psicológica de morte em vida, na qual a vida estaria submetida ao poder da morte.
Essa dinâmica genocida está em curso no Brasil virulento, pois a população negra, além de sofrer com os maiores índices de morte por covid-19, é o grupo racial com maior exposição às formas de contágio, devido ao acesso precário a saneamento básico; trabalhadores(as) uberizados, moradias precárias, dificultadores de distanciamento social, entre outros. Tudo isso tem interferência direta na saúde mental dessa população, provocando medo, ansiedade, desânimo, exigindo processos de luto, entre outros efeitos/demandas psicossociais.
A intersecção de raça, gênero e classe colabora com essa realidade, mas, não podemos deixar de apontar o racismo estrutural como pedra angular dessa lógica. Nessa esteira, compreendemos que a discussão de saúde mental da população negra deve acontecer no âmbito da atenção psicossocial, pois, apenas assim, compreenderemos os fenômenos apontados acima no bojo dos Determinantes Sociais de Saúde, o que permite a criação e fortalecimento de políticas públicas de saúde/saúde mental que interfiram nessa dinâmica racista de manicomialização e morte.
Para que possamos alcançar equidade racial no cuidado em saúde mental, é necessário o fortalecimento das bandeiras do movimento de Luta Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Afinal, a covid-19 escancara a necessidade de estratégias em saúde/saúde mental que visem à redução de danos como abordagem e estratégia de cuidado clínico, bem como, a importância do cuidado em liberdade. Para isso, os ensinamentos afrodiaspóricos necessitam de maior espaço neste campo de luta e cuidado. Sendo assim, ainda continuaremos a exclamar: a saúde mental da população negra importa!
Artigo publicado originalmente no site Huffpost Brasil
Emiliano de Camargo David – Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia Social (PUC-SP). Professor do Instituto SEDES Sapientiae (curso de Especialização “Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica: Clínica e Política na Transformação das Práticas”). Membro do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO). Integrante do Instituto AMMA Psique e Negritude. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas Lógicas Institucionais e Coletivas (NUPLIC – PUC SP).