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A Saúde no vermelho – entrevista de Áquilas Mendes

A sanção do orçamento de 2015 pela presidente Dilma Roussef, publicado no Diário Oficial da União em 22 de abril, só aprofunda os problemas do financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), retirando verbas já conquistadas pelo sistema, e a dependência de acordos legislativos para a obtenção de equipamentos e de infraestrutura, com a aprovação do orçamento impositivo. As opiniões são de Áquilas Mendes, economista e professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).

Em entrevista concedida à edição 197 da Revista do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), o abrasquiano expõe de maneira clara e didática os mecanismos utilizados para maquiar os cálculos, a forma como o governo vem desinvestindo em saúde; o descaso frente ao projeto de emenda popular apresentado pelo movimento Saúde + 10; a condição política e financeira da Santa Casa da Saúde de São Paulo, e outros aspectos da composição econômica e política dos entes federativos em relação com o SUS. Confira a matéria na íntegra abaixo ou acesse o PDF da Revista do Idec:

A história do Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil é marcada pelo subfinanciamento. Desde que foi instituído, recebe recursos insuficientes para executar as tarefas que lhe são incumbidas: atendimento universal, gratuito e de qualidade. É o que afirma o economista Áquilas Mendes, professor livre-docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ele avalia que essa situação crônica é o principal problema de saúde pública no país. O quadro que já era ruim deve ficar ainda pior com a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 358 em fevereiro pelo Congresso. A chamada PEC do Orçamento Impositivo altera o repasse de recursos para a saúde, reduzindo o aporte de bilhões de reais por ano para o setor, na contramão dos anseios da sociedade civil organizada.

A notícia não poderia ser mais desanimadora neste mês em que se comemora o Dia Mundial da Saúde (7 de abril), pois a falta de dinheiro se reflete em longas filas de espera, atendimento ruim e outros problemas dos hospitais públicos que os brasileiros tanto conhecem. Nesta entrevista, Mendes analisa a desvalorização do sistema público e alerta para um processo de mercantilização cada vez maior da saúde.

Idec: Quais foram as principais mudanças nas regras de repasse para o SUS trazidas pela PEC do Orçamento Impositivo?

Áquilas Mendes: A PEC mudou a base de cálculo. Antes, a EC [Emenda Constitucional] 29 previa a aplicação do montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB [Produto Interno Bruto]; agora, a base é a Receita Corrente Líquida (RCL), que corresponde ao total das receitas do governo federal – tributárias, de contribuições, patrimoniais, industriais etc., deduzidos os valores transferidos aos estados e municípios, a contribuição dos servidores para seu sistema de previdência, entre outros descontos. A nova regra prevê a execução do repasse de forma escalonada em cinco anos: no primeiro, devem ser aplicados 13,7% da RCL; o percentual aumenta gradualmente até alcançar 15% da receita no quinto ano. Há cálculos que apontam que a nova base acarretará uma perda de cerca de R$ 8,6 bilhões já no primeiro ano de implantação da PEC, em 2016.

Além disso, a PEC traz dois graves problemas: um deles é que o recurso referente ao Pré-Sal deixa de ser um excedente para a saúde, o que significa a perda de alguns bilhões de reais. O outro é um aumento das emendas parlamentares para um teto de 1,2% da Receita Corrente Líquida, e metade pode ser retirada do orçamento da saúde. A PEC é chamada de “orçamento
impositivo” porque torna obrigatória a execução total das emendas parlamentares [recursos que os deputados e senadores destinam para projetos em seus redutos eleitorais].

Sabemos que a maioria das emendas parlamentares não é articulada em sintonia com a política do SUS; elas têm mais relação com interesses específicos dos parlamentares. Dessa forma, as restrições ao financiamento do SUS serão ainda maiores, distanciando-o de sua proposta de ser um sistema universal de saúde.

Idec: Quando se fala nos gastos da União com a saúde, há três propostas que se destacam: destinar 10% do PIB; 10% da Receita Corrente Bruta ou da Receita Corrente Líquida. Qual é a diferença entre cada uma dessas “fórmulas”?

AM: A Receita Corrente Bruta (RCB) é o total das receitas da União sem descontos. Com as deduções, já citadas na resposta anterior, temos a Receita Corrente Líquida. A destinação de no mínimo 10% da RCB é defendida por entidades vinculadas à Saúde Pública, como a Abrasco [Associação Brasileira de Saúde Coletiva], o Cebes [Centro Brasileiro de Estudos de Saúde], o Conselho Nacional de Saúde e outros. Essas organizações conceberam um projeto de lei de iniciativa popular, conhecido como Saúde +10, que foi assinado por 2,5 milhões de brasileiros e tramita no Congresso desde junho de 2013. Se esse projeto for aprovado, o SUS contará com um acréscimo no orçamento de cerca de R$ 46 bilhões, o que corresponde a 0,8% do PIB. A proposta é importante para a sobrevivência do SUS, mas sabe-se que não resolve por completo o subfinanciamento histórico da saúde pública no Brasil. Nesse sentido, o ideal seria a aplicação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a saúde.

Idec: O senhor critica o argumento de rigidez orçamentária sempre apresentado pelo governo para não ampliar os recursos para a saúde. Por que a justificativa não procede?

AM: No plano mais geral, a dificuldade para a ampliação do gasto em saúde pública centra-se na esfera da política macroeconômica desenvolvida pelos últimos governos (Fernando Henrique, Lula e Dilma). Um dos objetivos dessa política é realizar anualmente substantivo superávit primário (receitas menos despesas, das três esferas de governo), a fim de manter sob controle o nível de endividamento do país, em detrimento dos desenvolvimento dos direitos sociais dos brasileiros. É a partir dessa política que o governo tem 46% de seu orçamento comprometido com o pagamento da dívida pública. Isso precisa ser denunciado, e a inversão dessa prioridade em favor das áreas sociais, especialmente as referentes aos direitos sociais, como a saúde, defendida.

Idec: Em sua opinião, o subfinanciamento do SUS é o principal problema de saúde pública no Brasil?

AM: Não tenho dúvida disso. A história do SUS é marcada pelos problemas de financiamento. Os recursos públicos envolvidos sempre foram insuficientes para garantir uma saúde pública universal, integral e de qualidade. Em 2012, o gasto público brasileiro em saúde foi de 3,9% do PIB (sendo 1,8% da União, 1,1% dos municípios e 1,0% dos estados), enquanto a média dos países europeus com sistemas universais foi de 8,3% do PIB. Além de ser subfinanciado, o SUS enfrenta sérias distorções na aplicação dos recursos a ele destinados. Estes têm sido usados, prioritariamente, para financiar a atenção especializada de alto custo, em sua quase totalidade prestada por serviços privados contratados. Nessa perspectiva, além de mais recursos para o SUS, é importante alterar essa lógica a fim de superar o contraproducente financiamento por
procedimento, por metas.

Idec: A responsabilidade pela destinação de verbas para a saúde é compartilhada entre a União, os estados e os municípios. Por que as críticas em relação aos problemas de financiamento do SUS se dirigem mais ao governo federal?

AM: O processo de descentralização do SUS e a aprovação da EC 29 provocaram impactos importantes no gasto público com a saúde, com significativa elevação da participação de estados e municípios. Em 1980, o governo federal participava com 75% dos recursos públicos alocados em saúde. A partir dos anos 2000, a sua participação foi decrescendo, atingindo 45,4% em 2011, ao passo que a dos estados aumentou de 18,5% para 25,8%, e a dos municípios de 21,7% para 28,8%. O resultado do aumento da participação dos estados e municípios no total dos recursos públicos significou uma elevação do gasto per capita das três esferas com o SUS, passando de R$ 378,27, em 2000, para R$ 717,70, em 2010. No entanto, o volume de recursos poderia ter sido maior se o governo federal e os estados tivessem cumprido a EC 29 de maneira plena. Ambos têm se utilizado de vários mecanismos para aplicar recursos menores. Entre 2000 a 2008, o governo federal incluiu no orçamento do Ministério da Saúde gastos que não se enquadram em ações e serviços de saúde; como com hospitais militares, com assistência médica a servidores – ambos atendimentos que não caracterizam acesso universal –, além de despesas com bolsa alimentação e com o programa farmácia popular, totalizando uma perda de recursos de mais de R$ 6 bilhões.

Idec: Quais são as competências de cada ente da federação em relação à saúde pública? Como o cidadão pode saber de quem cobrar?

AM: À União está reservado o papel de coordenação da política de saúde no país e a cooperação técnica e financeira aos demais entes. Os estados devem se responsabilizar pela cooperação técnica, principalmente regional, e financeira aos municípios. Estes últimos são os responsáveis pela execução das ações e serviços de saúde, especialmente no campo da atenção básica. No que se refere ao financiamento dessas responsabilidades, todos os entes devem ser cobrados e responsabilizados.

Idec: Uma grave crise financeira está instalada na Santa Casa de São Paulo, que chegou a fechar o pronto-socorro no ano passado. Qual é a responsabilidade do governo do Estado nessa história?

AM: O contrato firmado entre o governo do Estado de São Paulo e a Santa Casa estabelece as responsabilidades da instituição em relação aos serviços de saúde que devem ser assegurados por ela. É dever do governo do Estado acompanhar o desenvolvimento desse contrato, isto é, o cumprimento de suas metas físicas e financeiras. Se algo problemático acontecer na execução do contrato, o Estado tem pleno direito de alterar o repasse de recursos. Assim, não dá para aceitar que o governo estadual não estava por dentro da crise financeira da Santa Casa. Se isso aconteceu, o monitoramento e a avaliação da Secretaria de Estado da Saúde estavam com problemas.

Idec: Diante do histórico de destinação de verbas incompatível com um sistema de saúde pública universal e de cada vez mais incentivos aos planos privados, o senhor acha que a tendência é que o País caminhe para um modelo de mercado?

AM: Não tenha dúvida. Porém, a nossa luta tem sido e será de condenar a PEC 358/2013 em nome da sobrevivência do SUS universal no nosso País. Como disse, essa PEC incluirá muito pouco ou quase nada de recursos financeiros, tendo em conta o que a saúde universal necessita. Não podemos aceitar essa vergonha nacional em relação ao SUS. Não aceitaremos a consolidação da privatização do SUS, destruindo a saúde como direito.

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