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Naomar de Almeida Filho fala sobre o desafio das universidades brasileiras no século 21

Hara Flaeschen sob supervisão de Vilma Reis | Informações da Radis

Naomar de Almeida Filho – vice-presidente da Abrasco, médico sanitarista e professor titular de epidemiologia no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (UFBA) –  foi entrevistado pela revista Radis no especial “Universidade Pública à beira de um apagão”. Naomar falou sobre a “Universidade nova”, modelo de bacharelados Interdisciplinares que ele implantou enquanto reitor da UFBA (entre 2002 e 2010), que busca romper as grades curriculares tradicionais e expandir o ensino, fazendo da universidade um espaço de  “formação para o povo”. O abrasquiano também expôs a sua percepção sobre a elitização do ensino e a atual conjuntura das universidades públicas. Confira:

Radis – A expansão vivida pelas universidades públicas brasileiras, com aumento do número de vagas e criação de novos campi e cursos, de fato representou um vetor de democratização do ensino superior no Brasil?

Foi uma iniciativa importante, mas insuficiente. De fato, dobramos o número de vagas públicas no ensino superior, porém a demanda cresceu mais ainda. O resultado foi uma expansão do ensino privado maior do que se esperaria para falar de democratização do acesso. O que falta? Acho que ficamos devendo uma reestruturação curricular mais radical, capaz de atingir um maior contingente da população na idade de escolarização universitária. A simples ampliação de vagas em cursos profissionalizantes convencionais não vai contribuir para democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras.

Radis – Podemos falar que houve uma “deselitização” da universidade brasileira nos últimos anos?

Longe disso. Houve uma janela de oportunidades mal-aproveitada. E o pior é que as inovações curriculares e pedagógicas que iniciamos aproveitando os governos progressistas e as políticas sociais estão sendo neutralizadas de dentro mesmo, de dentro da própria universidade. É curioso que esse tema não encontra um recorte muito claro entre polaridades políticas. A ideia de que um pensamento, digamos, de esquerda defenderia a massificação, e um pensamento antagônico de direita a elitização. Isso porque muitos, a partir de conceitos considerados convencionalmente progressistas, fazem o discurso da defesa da qualidade. Por aí justificam um falso discurso de excelência e meritocracia, usando uma equação que parece simples: quanto mais gente entra na universidade, mais massificado fica o ensino e, portanto, de qualidade mais reduzida. Então não tem saída nessa lógica: obrigatoriamente vem uma interpretação de que a universidade, nesse caso, deve ser um privilégio para poucos. Ela tem que ser ótima, mas para um número muito pequeno de pessoas. Sei que essa é uma opinião que pode desagradar, mas acho que poderíamos ter ido mais rápido e mais fundo na mudança. E a situação política atual, conservadora, essa conjuntura à beira do fascismo social, não me dá muita esperança de avanços. A palavra ameaça é pouco. Penso que o assédio institucional por parte do governo federal já começou e agora vira agressão.

Radis – Qual a cara da universidade pública hoje?

É uma cara feia. O sistema brasileiro de educação superior se desenvolveu sobre uma série de distorções. Não vem cumprindo as finalidades da formação universitária e perdeu sua capacidade de formação profissional. Por dois motivos. Primeiro, os conceitos que eram modernos há dois séculos, um século ou 20 anos, hoje estão completamente ultrapassados. A ideia antiga de que o conhecimento é um bloco que pode ser quebrado em pedaços e, depois, em estruturas menores ainda, até chegar ao tamanho do que chamam disciplina, que, na verdade, é uma secção do corpo de conhecimento, essa ideia não vale mais. Há muito tempo se sabe que o conhecimento não é uma soma de fragmentos e sim uma rede complexa de métodos e objetos. Essa é a raiz conceitual da obsolescência do atual sistema universitário. A segunda é a própria questão da história das universidades como modelo de formação profissional. A universidade brasileira é baseada no modelo europeu-mediterrâneo do século 19, quando havia apenas cinco profissões regulamentadas. A educação universitária brasileira atual conserva modelos de formação das velhas universidades europeias, onde prevalece uma concepção fragmentada do conhecimento, agravada por reformas universitárias frustradas justamente porque o conservadorismo venceu. Essa estrutura acadêmica sofre sérios problemas, que precisamos urgentemente superar. Por um lado, os currículos de graduação são estreitos e bitolados, com forte viés monodisciplinar, agravado pelo enorme fosso existente entre a graduação e a pós-graduação. Por outro lado, a excessiva precocidade na escolha de carreira profissional, além de tudo submetida a um sistema de ingresso direto aos cursos profissionais através de um exame como o vestibular, desenhado para selecionar alunos portadores de conhecimento (ou memorizadores de informações), sem formação humanística e política, sem valorizar as diferenças e a sustentabilidade. Continuamos com uma universidade elitizada e elitizante. Não só para poucos, mas com um recorte preocupante de desigualdades internas.

Radis – Como a introdução das políticas de cotas e as ações afirmativas modificaram as relações no interior das universidades? 

Realmente, em vários espaços da educação superior, programas de ação afirmativa foram bem-sucedidos em abrir vagas públicas para segmentos que antes eram excluídos ou sub-representados, principalmente por segregação étnico racial ou distância de classe social. Porque as universidades públicas eram do Estado, mas não se destinavam ao povo. Vagas em universidades públicas de melhor qualidade e nos cursos de maior prestígio social eram (e ainda são, em grande medida, apesar das políticas de ações afirmativas compensatórias) destinadas quase que exclusivamente a uma minoria. Quando comecei a formular este argumento, pensava: é injusto alguém, por ter dinheiro, poder comprar o acesso de seus filhos à educação superior pública, excluindo aqueles que não têm posses. Já achava isso terrível, mas depois que tomei conhecimento dos estudos do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], com dados oficiais, demonstrando que parte das despesas de educação dos filhos das elites é ressarcida pelo sistema tributário regressivo, verificamos que os brasileiros pobres pagam a educação dos ricos. A injustiça torna-se perversão, uma tripla perversão realmente absurda. Resultado: no Brasil, pessoas são formadas em universidades públicas desprezando o caráter público do Estado, engajadas em projetos individualistas, numa relação muitas vezes até predatória com a instituição pública de educação. Relacionam-se com a universidade pública como o lugar onde vão adquirir ou garantir um futuro profissional, uma carreira pessoal, seu projeto individual ou familiar, sem qualquer construção de solidariedade pelo pertencimento à instituição universitária sustentada pela sociedade. Hoje depois das cotas o perfil racial e social mudou bastante, sem dúvida, apesar da reação de muita gente, mas ainda não temos uma equivalência demográfica nas melhores universidades e nos cursos superiores de maior prestígio social.

Radis – O que propõe o modelo da Universidade nova?

Quando eu era reitor da UFBA, aí por 2006-2007, iniciamos um projeto de mudança da arquitetura curricular e de implantação de abordagens interdisciplinares na formação que se chamou de UFBA Nova. A principal inovação da proposta era criar o bacharelado interdisciplinar — cursos curtos de três anos de iniciação à universidade. Quer dizer, cursos de cultura universitária em que o aluno, independentemente da profissão que escolher, terá uma formação geral capaz de recuperar elementos que foram esquecidos. Por exemplo, estudos clássicos, elementos de grego e latim, história, filosofia, ética, lógica, pensamento matemático, incluindo computação, acrescidos de consciência ecológica, cidadania, política, saúde, qualidade de vida, iniciação científica, e artes, muita arte. Isso tudo foi esquecido na formação universitária no Brasil. O aluno, logo no primeiro ano do curso profissional na universidade, já sabe todas as disciplinas que terá que cursar até o final. Ao final de três anos, o aluno recebe o seu diploma de bacharel em Artes, em Ciências, em Humanidades, em Tecnologias. Assim, a gente terá dado aos alunos que antes foram socialmente excluídos uma chance de, dentro da universidade, ter uma formação científica, artística e cultural e, consequentemente, conseguir que seu potencial seja aproveitado de modo mais equitativo e socialmente mais justo. A proposta cresceu, se expandiu e terminou ganhando esse nome Universidade nova.  Nossa iniciativa tinha raiz numa tensão que eu acho que todas as universidades passam, mas a brasileira sofre muito com isso, que é entre o projeto de uma universidade elitizada e a universidade como uma formação para o povo. Os modelos em muitos países no mundo que têm uma diferenciação social muito marcada são assumidamente “torres de marfim”. Então a universidade se torna um lugar isolado, onde as elites de um país vão ser formadas. A história da universidade é muito assim, mesmo em países com forte tradição democrática. Alguns poucos escolhidos chegarão a entrar nessa instituição. A história do Brasil constrói um sistema de educação superior para formar uma elite não universitária. A formação de nossas elites se dá em faculdades e escolas, que é uma variante do modelo de universidade.

Radis – Que balanço o senhor faz do Reuni?

Eu disse há pouco que tivemos uma janela de oportunidades perdida. No sistema federal, por exemplo, isso foi o Reuni, destinado à recriação da universidade pública. Foi no fim das contas de menor expressão que o Prouni e o Fies, reforçadores do ensino superior privado. O Reuni foi uma iniciativa que, a despeito das intenções da política governamental, terminou se resumindo em aumento de vagas em cursos que já vinham sendo dados de forma antiga e superada. Oferecer mais do mesmo, mais cursos longos e rígidos, para uma profissionalização hierarquizada, não vai contribuir para democratizar o acesso às universidades públicas brasileiras.

Radis – Como os cortes de bolsas e redução do orçamento das instituições federais anunciados pelo governo federal devem afetar as pesquisas e as ciências feitas no Brasil?

Redução de orçamento, num sistema de reduzida autonomia, que praticamente obriga a exclusividade de fontes públicas para financiamento das universidades, significa estrangulamento e desmonte. E corte de bolsas quer dizer matar o futuro, simplesmente porque a reprodução de docentes e pesquisadores precisa de um financiamento prévio para futuros candidatos a repor os quadros da educação superior. A médio prazo, teremos um êxodo de mentes talentosas e dedicadas ao ofício de produzir conhecimento. Na verdade, em alguns setores, esse êxodo já começou. No longo prazo, apagões e crises, culminando com o aumento da dependência política e econômica numa nova ordem internacional que valoriza a ciência, tecnologia e inovação tanto que praticamente induz países como o Brasil a se desaparelhar para ser um player [ator] mundial.

Radis – Além dos cortes, estamos no meio de uma turbulência político-ideológica, com a ascensão de teorias negacionistas ou anticientíficas e certo desmerecimento das ciências humanas. Nesse contexto, há lugar para uma universidade que leva em conta as dimensões subjetivas e simbólicas para além de seu valor institucional?

Essa desvalorização, desprezo e até hostilidade à ciência, à arte e à cultura não tem a menor condição de se sustentar. É muita estupidez e truculência de uma só vez. Atacam as liberdades mais valiosas para o desenvolvimento humano. Mas se, infelizmente, lamentavelmente, uma plataforma de barbárie e fundamentalismo como essa se confirmar e se mantiver, não há lugar para a universidade. É por isso que os ataques institucionais, as agressões jurídicas e policiais já começaram. As guerras culturais já estão aí e as universidades são alvos principais, até porque os agressores sabem que a crítica e a contestação são matéria prima da produção de ciência, criação e inovação.

Radis – Embora sejam instituições mantidas pelo Estado, as universidades públicas gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão, garantida pela Constituição (artigo 207). Por que garantir a autonomia das universidades é essencial para sua sobrevivência?

Defendo a tese de que a autonomia mítica da universidade do século XIX não mais se justifica. Antes, a instituição universitária se apresentava como vanguarda de uma elite, postulava-se como consciência crítica da sociedade e, por isso, era pouco questionada. O mundo mudou desde então. Hoje a universidade precisa de modo continuado demonstrar seu valor político e social como instrumento necessário ao desenvolvimento econômico e humano da nação. Precisamos recobrar nossa autonomia paradoxalmente engajando a comunidade de modo participativo, para que a sociedade passe a nos cobrar não por normas e regras bem cumpridas, mas por objetivos socialmente relevantes efetivamente alcançados.

Radis – Quais desafios estão colocados para as universidades públicas brasileiras na próxima década?

Não podemos ser ingênuos quanto ao papel da universidade pública num contexto social, como no Brasil, onde a educação é um forte fator de promoção das desigualdades e reprodutor da dominação de classes sociais. Isso se agrava na conjuntura brasileira atual, fortemente marcada por ódio e ensaios de opressão. Nesse momento adverso, o maior desafio enfrentado pela universidade pública traz uma aparente contradição: como fazê-la socialmente responsável, reafirmando a qualidade e a competência que a definem como instituição. Este desafio desdobra-se em questões cruciais. Como reforçar a competência científica e artística da universidade e, no mesmo movimento, ampliar vagas públicas em larga escala, abrindo suas portas a segmentos sociais historicamente dela excluídos. Como incutir responsabilidade política na busca constante de autonomia e criatividade e, simultaneamente, fomentar princípios de eficiência e economicidade definidores da gestão pública. Como reafirmar nosso compromisso social e, ao fazê-lo, introduzir os valores de interdisciplinaridade e excelência acadêmica. Para de fato enfrentar a lógica mercantil, a universidade pública precisa ser criativa e eficiente, mantendo sua qualidade, mas não para os herdeiros da elite, se não, vai continuar sendo pública, mas não do povo. Para acolher a massa de excluídos e ter um papel relevante na integração social desses sujeitos, para produzir conhecimento local-regional e ter relevância nos projetos de desenvolvimento nacional, para contribuir para superar esse triste momento de barbárie cultural, desmoralização ética, retrocesso social e desesperança política, a universidade precisa se recriar de fato como Universidade Popular.

Matéria originalmente publicada no site da Radis.

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