*Este artigo é uma produção do GT Racismo e Saúde da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) em parceria com o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA)
No dia 8 de dezembro de 2020, uma inglesa de 90 anos tomou a primeira dose da vacina contra a covid-19 oficialmente aprovada por um governo para uso público. O Reino Unido, por meio do respeitado e bem financiado NHS (Serviço Nacional de Saúde) – o equivalente ao SUS de lá –, irá disponibilizar as duas doses gratuitamente para toda a população do país, deixando claro que é possível aprender lições e melhorar as ações governamentais durante a pandemia.
Alguns países, como o Canadá, já compraram até cinco vezes mais vacinas que o seu tamanho populacional. Outros já entraram ativamente no mercado para abastecer sua população, como a Alemanha, a Itália, a França, o México e o Chile. Há ainda os que não têm dinheiro para comprar qualquer vacina, como é o caso de algumas repúblicas africanas, que dependerão de apoio internacional e da OMS (Organização Mundial de Saúde) para a cobertura de sua população.
No Brasil, somente no dia 12 de dezembro o Ministério da Saúde publicou o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19. Porém, apesar de o texto indicar que o governo garantiu 300 milhões de doses de vacinas, permanecem muitas incertezas, informações desencontradas, disputas sobre o que é responsabilidade de cada ente federado, como as vacinas serão adquiridas, quando estarão disponíveis e quais serão usadas entre as opções despontando no cenário mundial. São mais de 150 atualmente em desenvolvimento no mundo.
Mas, apesar da lentidão governamental, que tem sido frequente no manejo da covid-19 e foi considerada pela Academia Nacional de Medicina como “falta de decoro sanitário e enorme leviandade”, segundo nota publicada no dia 11 de dezembro, mais cedo ou mais tarde pelo menos alguma das cinco vacinas em teste no país será aprovada pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para distribuição nacional. E aí um novo desafio se descortinará: quem terá acesso a ela?
Uma das que estão em estágio mais avançado de produção e distribuição, a da americana Pfizer, feita em parceria com o laboratório alemão BioNTech, precisa de refrigeração a -70ºC para se manter estável. É ela que está sendo utilizada no Reino Unido, que planejou cuidadosamente toda a logística de sua distribuição, com o rigor adequado de temperatura e aplicação pelo país. Ela também foi aprovada nos EUA, Canadá, México, Bahrein e Arábia Saudita. Embora envolva considerável dificuldade de armazenamento, é uma das que têm sido cogitadas para adoção pelas autoridades brasileiras. Outras são a da empresa inglesa AstraZeneca, desenvolvida em parceria com a universidade de Oxford, e a produzida pela aliança internacional Covax Facility.
Alguns estados, como São Paulo, Bahia e Pará, têm buscado outras vacinas de forma independente. No caso do Sudeste, o acordo é com a chinesa Sinovac, para aquisição de uma vacina que vem sendo desenvolvida em parceria com o Instituto Butantan. O imunizante, segundo o órgão estadual, já está em processo de produção. O estado do Nordeste está em uma parceria com o Instituto Gamelaia, da Rússia, para o uso da vacina Sputnik V, que, segundo fontes oficiais, já está sendo utilizada em larga escala naquele país. No Pará, o governo estadual assinou contratos de intenção de compra com o Butantan e o consórcio Covax.
No mesmo dia em que se iniciou a vacinação no Reino Unido, uma reunião em Brasília entre o ministro da saúde e os governadores para discutir um plano nacional de imunização terminou sem qualquer acordo ou projeto consolidado, mas talvez tenha ajudado a pressionar o ministério a finalizar seu plano de vacinação. Diante de tal cenário, como garantir que as vacinas chegarão às populações mais necessitadas quando temos um governo negacionista e que descura exatamente dos mais carentes, especialmente quando se trata das populações indígenas e quilombolas?
Já se sabe que na vigência da pandemia negros e indígenas têm morrido mais que outros grupos. Eles não têm recebido a atenção que lhes é legalmente prevista. Neste ano, diversas organizações da sociedade civil, representantes dos indígenas e dos quilombolas e alguns partidos políticos precisaram se juntar para demonstrar judicialmente ao Supremo Tribunal Federal, por meio de duas ações1, que o governo federal tem falhado e se omitido no combate à doença nas aldeias e nos quilombos. Eles solicitaram à corte que obrigasse o Executivo a cumprir seus mandatos constitucionais no que tange à saúde desses grupos.
As populações quilombolas, descendentes dos escravizados que fugiam da servidão e da violência, têm sido historicamente discriminadas e sofrem com o peso do racismo estrutural, institucional e ambiental vigentes no Brasil. O resultado de tal processo é refletido em piores condições de saúde, saneamento, educação e infraestrutura presentes nas mais de 5.500 comunidades autodeclaradas espalhadas pelo território nacional. No caso da covid-19, a mortalidade entre os quilombolas pode ser até quatro vezes maior que na população em geral. Foram cerca de 200 mortes até o início de dezembro, segundo dados coletados pela Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas), que é a principal articuladora da ADPF 742 no Supremo.
Estão sendo particularmente afetadas as populações da região Norte, que conta com as maiores distâncias e dificuldades de acesso a serviços de saúde. Não se sabe ao certo quais as taxas de infecção nesses grupos, pois não houve até agora uma ação governamental para o mapeamento da situação epidemiológica das comunidades negras rurais. Estados e municípios também desenvolveram ações mínimas e localizadas de promoção da saúde e prevenção da covid-19 nessas comunidades.. Mas é no Norte que se concentra a maior mortalidade de quilombolas e indígenas.
Os planos de vacinação desenvolvidos pelo mundo até agora, inclusive o do governo federal, têm estabelecido quais grupos são prioritários para receber qualquer vacina disponibilizada. Eles incluem os mais idosos e seus cuidadores, os profissionais de saúde, as forças de segurança e de emergência e as pessoas com comorbidades, que estão entre os consensualmente considerados para receber as primeiras doses adquiridas. Em seguida, em tese, viriam outros grupos mais suscetíveis, mas quem eles são exatamente ainda é motivo de debate.
No Brasil, a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) propôs que os grupos indígenas e quilombolas, a população em situação de rua, os encarcerados, os servidores do serviço prisional, os servidores da educação e os mais pobres sejam priorizados nos planos de vacinação. Outras organizações concordam com a priorização desses grupos. Algumas dessas propostas já foram acatadas pelo Plano Estadual de Imunização de São Paulo e estão em discussão em diversos outros estados. Mas, a nível nacional, não há ainda indicação clara de quando será iniciada a campanha, ou o caminho que o governo federal, formalmente responsável pela aquisição e distribuição das vacinas e dos insumos para sua aplicação em todo o país, irá tomar.
Segundo a manifestação da Academia Nacional de Medicina, “estamos muito atrasados e precisamos construir estratégia sólida que permita, já no início de 2021, a realização segura da vacinação em massa da população”. Embora o Brasil tenha um dos melhores e mais antigos programas nacionais de imunizações do mundo, com amplo sucesso em garantir a chegada de vacinas a todos os rincões, as populações quilombolas, que sempre sofreram com a falta de serviços e infraestrutura de saúde, têm menor acesso à vacinação em geral e a outras estratégias preventivas, e maiores taxas de doenças agudas e crônicas que outros grupos — com exceção dos indígenas —, o que as coloca em maior risco de mortalidade por Covid-19.
Grande parte dessa situação se deve ao não cumprimento da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e ao racismo estrutural. Considerando a situação atual, quando já se contam mais de 180 mil mortos no país, há um novo aumento de infecções, com cerca de 40 mil novos casos diários, e continua-se com baixa testagem em todas as regiões, é fundamental que as comunidades quilombolas sejam incluídas entre os grupos prioritários para vacinação. Não se trata aqui de fazer apologia ao sofrimento, mas de reconhecer que, em uma sociedade tão desigual, é obrigação dos governos se posicionar na defesa da vida dos grupos historicamente negligenciados.
Para garantir que essa prioridade seja efetivada, é necessário não apenas haver a disponibilidade de vacina em quantidade suficiente para atender à demanda das prioridades e do conjunto da população, mas que as condições para a realização das imunizações sejam adequadas, tanto do ponto de vista de logística para fazê-las chegar aos quilombos como para evitar que uma eventual campanha se transforme em vetor da doença para dentro das comunidades.
Ao longo do ano, algumas ações emergenciais promovidas por estados e municípios para levar kits de higiene, cestas básicas e testagem às comunidades acabaram por causar aglomeração nas unidades e postos de saúde, no transporte entre as residências e as áreas urbanas e no processo de recrutamento, realizado muitas vezes por agentes externos ao grupo, que desconhecem sua realidade, que não haviam sido previamente testados nem usavam EPIs (equipamentos de proteção individual) adequados, ampliando o risco de contaminação dos comunitários.
Há, portanto, necessidade de que uma campanha de vacinação para os quilombolas seja planejada. Ela deve garantir que as associações e organizações locais sejam previamente consultadas e se comprometam com a orientação das comunidades sobre o uso de máscaras e o distanciamento social, além de colaborar nos procedimentos de acesso aos territórios. É preciso também que os técnicos das equipes sejam preferencialmente das próprias comunidades, que a ação ocorra nas próprias localidades, evitando ao máximo os deslocamentos de quem está em quarentena autoimposta, que todos os envolvidos sejam previamente testados, que tenham acesso a EPIs e que os utilizem de maneira adequada.
A ADPF 742, admitida pelo STF em agosto, ainda não foi julgada. A Conaq — junto com diversos parceiros, como o GT Racismo e Saúde da Abrasco e a Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros — está propondo ao Supremo que, além das demandas já apresentadas, a ação incluaa prioridade de acesso à vacinação para os grupos quilombolas, que não foi contemplada no plano do governo federal. Como visto, a demanda é amplamente justificada pela situação sócio-sanitária na qual os quilombos se encontram e deverá fazer parte de qualquer plano de governo que respeite os princípios constitucionais e humanitários.
Recentemente a Fundação Bill e Melinda Gates apontou que, além da crise econômica e a concentração de renda resultantes da pandemia causada pelo novo coronavírus, o acesso ou não à vacinação pode ser um vetor adicional de ampliação das disparidades sociais globais, pois alguns países e segmentos populacionais — notadamente os mais ricos e urbanos — terão acesso privilegiado às vacinas, reduzindo suas taxas de morbidade e mortalidade e podendo então retomar às atividades econômicas antes daqueles que historicamente sofrem com menor renda e acesso aos bens sociais e econômicos.
Enquanto alguns países, como o Reino Unido e o Canadá, que têm sistemas de saúde universais, como o SUS, trabalham ativamente para reduzir as disparidades nos serviços de saúde e no acesso à vacina, até o momento, o que se tem visto por aqui é um descaso da União e dos estados. Com a histórica falta de implementação de políticas públicas nos municípios — apenas cerca de 28% deles têm implantado algum aspecto da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, instituída em 2009 — , esse descaso tem aumentado a insegurança alimentar e nutricional, aprofundado a vulnerabilidade econômica, diminuído o acesso à Atenção Básica e resultado em uma elevada taxa de mortalidade nas comunidades rurais, quilombolas e indígenas.
O Brasil é um dos países com maiores disparidades sociais do mundo, o que, somado à falta de planejamento no lidar com a pandemia, transforma-se em um “coquetel perfeito” para que o desenrolar da atual crise sanitária amplie as iniquidades étnico-raciais e econômicas já existentes. A sociedade brasileira precisa se mobilizar de todas as formas para que esse crime não venha a ocorrer.
Artigo publicado originalmente no site do Nexo Jornal
Hilton P. Silva é docente da UFPA (Universidade Federal do Pará), membro do GT Racismo e Saúde da Abrasco e do GTI em Defesa das Garantias e dos Direitos dos Povos Quilombolas e Contra o Racismo da Defensoria Pública do Estado do Pará.
1 São as ADPFs (Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental) 709 e a 742.