Fazer pesquisa é se dispor a um mergulho profundo na vida, tanto na vida da própria pessoa que a desenvolve como na existência dos universos investigados. É a vida de Iêda Santos, de 58 anos, mulher negra, de axé, enfermeira graduada, mestra em Desenvolvimento Regional e Meio Ambiente e defensora do SUS – conheça a história de Iêda por ela mesma, relatada à repórter Larissa Espósito – como também tantas outras vidas, como a de Tamildes Oliveira, jovem militante do MST; de Girlene de Jesus Almeida, 50 anos, moradora de rua e usuária dos serviços de saúde mental; de Eliete Paraguassu da Conceição, 42 anos, marisqueira da Ilha da Maré e liderança política; de Ananias Viana, líder quilombola de Cachoeira. São pessoas com nome e sobrenome, com histórias representativas e que dão vida às pesquisas desenvolvidas pela Saúde Coletiva e que estão construindo junto com Comissão Local do 13º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e Diretoria da Abrasco a Estratégia Abrasco em Movimento.
A presidente Rosana Onocko-Campos explica: “É uma tentativa de aproximar o Abrascão 2022 dos movimentos sociais e dos grupos locais que estão trabalhando com temas da Saúde Coletiva e populações vulnerabilizadas. Convidamos diversos movimentos e organizações locais – dos profissionais da saúde, dos usuários e familiares da saúde mental, da juventude, das comunidades de terreiro, das populações quilombolas e indígenas, tanto em Salvador como em cidades do interior – para que eles pudessem nos ajudar a pensar uma agenda a ser construída coletivamente. Queremos saber o que eles têm a solicitar e a questionar o Saúde Coletiva. Que agenda de ações podemos fazer juntos? Quais temas esses movimentos têm interesse em saber? Esse processo tem produzido muita riqueza coletiva”.
Para proporcionar esses encontros, uma série de oficinas foram desenvolvidas no ISC/UFBA e dentro dos territórios, tendo reunido dezenas de pessoas e movimentos e construído novas metodologias de trabalho, comenta Liliana Santos, integrante da Comissão Local em mediação com os movimentos.
“Além da riqueza dos debates, essa experiência tem proporcionado a integrantes da comissão organizadora local uma série de documentações que serão compartilhadas em distintos formatos durante e, em especial, depois do nosso Congresso. Tais debates, tensões e consensos, escutar, ressignificar, acolher e exercitar outros olhares a partir de perspectivas quilombolas, indígenas, sem-terra, da luta pelo direto à cidade, à vida e à saúde têm reforçado em nós a vontade de fazer mais, agregar outras leituras, adensar análises e integrar olhares na defesa da vida”.
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O encontro do conhecimento com a arte: Desde o início da construção da Estratégia Abrasco em Movimento foi sentida a necessidade de um registro especial, que juntasse técnica e subjetividade. Rapidamente, o nome de Nana Moraes foi lembrado; o convite feito e aceito.
O caminho da artista com a Associação já havia se cruzado no Abrascão 2018, em decorrência da exposição Ausência, cujo o olhar fotográfico de Nana para e com as mulheres e mães encarceradas no sistema prisional rendeu o convite para a aula inaugural da Fundação Oswaldo Cruz daquele ano, junto com Maria do Carmo Leal, pesquisadora da ENSP/Fiocruz que coordenou o projeto Nascer nas Prisões.
Para Nana, o debate foi um encontro inestimável e transformador. “O meu trabalho contribuiu para as leituras do trabalho científico de Duca, e vice e versa. Na conversa percebemos que os achados são os mesmos, só que de forma diferente”, diz a artista.
Ausência foi montada na Cavalariça da Fiocruz, espaço do Museu da Vida, especialmente para o Abrascão realizado no campus Manguinhos, com a ilustre presença de Michelle Bachelet, Alta Comissária das Nações Unidas, na abertura. Para ampliar o diálogo, uma nova mesa com Nana e Duca jogou luz sobre os olhares femininos sobre o cárcere.
Novas estratégias: Para apresentar a Estratégia Abrasco em Movimento, Nana comporá uma instalação que ampliará as possibilidades de escuta e visibilidade dos e das participantes das oficinas e dos presentes ao Congresso. “São pessoas da terra, do mar, do ar. Tem sem-terra, sem-teto, pescadores, marisqueiras, usuárias da saúde mental, militantes LGBTQIA+, população de rua, juventude. São muitos os movimentos e só penso no Paulo Freire…. Que venham todas as marchas, dos sem terra, dos sem escola, dos sem escuta. A ciência, ao se abrir, só tem a crescer; e a potência do Brasil está nessa territorialidade”.
Liliana ressalta a potência do encontro e do legado esperado. “Compartilhar esse exercício durante e depois do Congresso, contando com as mediações da linguagem artística, nos traz ânimo para repensarmos as formas de produzir conhecimento, integrando e sobretudo acolhendo as diferenças na perspectiva da produção de outras formas de agir na Saúde Coletiva”.
Recriar os laços de parceria e afeto: Entre vivências, imagens e ideias, pessoas e movimentos dão os seus recados. Iêda conhece os dois lados da moeda. Quando realizou sua pesquisa de mestrado, sentiu a força dos modelos acadêmicos como um processo de embranquecimento. Quando é procurada como mulher de axé para pesquisas sobre a religiosidade afro-brasileira, percebe o afastamento entre universidade e sociedade e o peso do racismo estrutural sobre as práticas de saúde de culturas e grupos silenciados. “Quando você fala da medicina tradicional chinesa, todo mundo fica de espinha ereta. Mas quando se fala da medicina tradicional afro-brasileira, é crendice. Onde está o respeito?”, questiona.
Rosana Onocko, que participou da primeira oficina, realizada em maio, ressalta o desafio trazido pela estratégia Abrasco em Movimento. “Os movimentos reivindicam e pedem uma proximidade da Academia e da nossa Associação, mas não deixam de apontar problemáticas concretas, que nós precisamos ouvir e, mais ainda, com eles aprender.”
“Assim, queremos contar aos congressistas e às futuras gerações sobre o nascimento desse novo processo, mais institucional, de fazermos conhecimento em Saúde Coletiva juntos. Por isso, o esforço exemplar da Comissão Local em convidar tantos movimentos. Por isso, o convite a Nana Moraes, de produzir o testemunho desse processo de conhecimento pela linguagem fotográfica, pela arte”, completa Rosana. O documento síntese será apresentado à plenária final do Congresso.
Isabela Cardoso, presidente do Congresso, reforça: “Esse é mais um movimento que reflete o espírito desse Congresso: agregador, diverso e propositivo. Espaço que reúne participação, protagonismo, ciência, arte, política, resistência e luta”.
Iêda, presença garantida no Congresso, finaliza sua conversa com uma dica a respeito ao sagrado, fundamental para o trato com os estudos sobre as religiosidades de matriz africana. “Pise no chão devagar, com respeito. Até porque num chão de Terreiro, ou de Igrejas, é tudo chão sagrado. Na nossa casa, tem espaço em que andamos descalços não só pelo contato com a terra, mas pelo respeito, porque entendemos que o sapato é uma barreira. Entrar descalço significa humildade, porque meu título é social e fica do lado de fora. […]. Pergunte, dialogue, procure saber sobre aquele lugar e propague uma cultura que dignifica.”
Como autor deste texto, e com o consentimento de Iêda, estendo a ideia do respeito ao sagrado de cada pessoa pesquisada, de cada realidade estudada, de cada universo desvendado, ao sagrado do fazer pesquisa. Já que o conceito de sagrado também abriga a compreensão do mistério que constitui e possibilita a manifestação da realidade, quando formos fazer pesquisa, pisemos no chão devagar, com respeito.