Para marcar o Dia Mundial da Água, a Abrasco entrevistou Leo Heller, integrante da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco. Ele atuou como Relator Especial dos Direitos Humanos relacionados à Água e Saneamento Básico das Nações Unidas (ONU) entre 2014 e 2020. Além disso, é autor do livro “The Human Rights to Water and Sanitation”, publicado pela Cambridge University Press. Possui vasta experiência no campo do saneamento básico, com foco especial nos direitos humanos, saúde ambiental e formulação de políticas públicas.
Confira abaixo:
Comunicação Abrasco: O acesso à água potável é um direito humano e fator básico para garantir a saúde da população. Entretanto, sabemos que ele segue sendo violado principalmente nas regiões mais vulnerabilizadas do país e do mundo. Hoje, quais são os principais desafios para se garantir que o acesso à água seja, de fato, universal?
Leo Heller: De fato, uma proporção importante da população brasileira e mundial tem acesso limitado à água para consumo humano, e também a serviços de esgotamento sanitário. O Censo 2022 do IBGE aponta que 83% da população brasileira eram abastecidos por rede de água naquele ano, o que representa um quadro intranquilizador, mesmo que esse número suba para 97% quando se consideram outras formas de abastecimento (poços profundos, poços rasos, cacimbas, fontes, nascentes ou minas). Em primeiro lugar, essas demais formas podem representar um abastecimento precário, pela falta de garantia da qualidade da água e da continuidade do abastecimento. Em segundo lugar, mesmo a proporção da população abastecida por rede nem sempre recebe a água em conformidade com os critérios de potabilidade, e nem sempre a recebe sempre que as populações dela necessitam. Em nível mundial, estima-se que 73% da população recebam água em conformidade com os padrões estabelecidos pelo ODS 6.1, ou seja, disponível nas residências ou lotes, acessível sempre que necessário e com qualidade que proteja a saúde humana.
As razões para ainda estarmos em débito com a universalização do acesso são múltiplas e variam de local para local. No Brasil, tem havido uma preocupante descontinuidade na concepção e implementação das políticas públicas, o que é muito pernicioso para um setor que requer estabilidade de orientações e de financiamento público, para se planejar e incrementalmente ampliar o acesso populacional. Para ficarmos em um exemplo, desde o governo Temer, mas particularmente no governo Bolsonaro e em acordo com sua política econômica, a solução para ampliar o acesso no campo do saneamento foi o estímulo a uma ampliação acelerada da privatização dos serviços. Embora o governo Lula 3 venha sinalizando para uma orientação que valoriza a água como um bem público, o legado da política anterior ainda influencia fortemente a política atual. Entretanto, a concepção de ampliação do acesso por meio do financiamento e da gestão privada tem se mostrado em várias partes do mundo como falida. Os países do Norte Global que universalizaram o acesso a serviços de água o fizeram com maciços investimentos públicos e com valorização da gestão local.
Comunicação Abrasco: Neste ano, o Dia Mundial da Água é celebrado no Brasil com discussões em torno do tema: “A Água nos Une, o Clima nos Move”. Como as mudanças climáticas estão afetando a disponibilidade e qualidade da água?
Leo Heller: Há vários indícios de que as mudanças climáticas vêm reduzindo sazonalmente a disponibilidade de água dos cursos de água, sejam aquelas fontes acessadas diretamente pelas populações rurais, sejam aqueles mananciais utilizados pelos sistemas de abastecimento. Via de regra, os prestadores de serviço não vêm se organizando para acionar planos de contingência, por exemplo, prevendo flexibilidade nos sistemas para compensar períodos de estiagem extrema. Por outro lado, também o excesso de água, resultante das oscilações mais extremas do clima, vem afetando a infraestrutura de abastecimento. O mais grave desses processos é que não impactam as populações de forma homogênea, mas sobretudo os mais pobres e com menor capacidade econômica de acionar formas alternativas de abastecimento.
Comunicação Abrasco: E quais os impactos geram na saúde da população? Há alguma relação com surtos de doenças tropicais, como Dengue, Zika e Chikungunya, por exemplo?
Leo Heller: Os impactos do acesso inadequado à água e ao esgotamento sanitário na saúde humana já estão bem estabelecidos. Estudo recente, com revisão sistemática da literatura, mostra que tratar a água reduz a diarreia infantil em mais de 50%; a melhoria da fonte de água reduz em 52%; a implantação de redes de esgotos em 47% e a promoção da lavagem das mãos em 30%.
Outro estudo recente estimou a carga de doenças que pode ser atribuída às deficiências em água e saneamento, concluindo que 1,4 milhões de mortes e 74 milhões de anos perdidos por incapacidade (DALYs) poderiam ter sido evitados caso houvesse água, esgotos e higiene seguros no mundo, representando 2,5% de todas as mortes e 2,9% de todas as perdas por incapacidade. Diarreia, infecções respiratórias agudas, desnutrição e geohelmintíases foram os desfechos considerados na pesquisa.
Quanto às arboviroses, como a dengue, Zika e Chikungunya, a relação entre os quatro componentes do saneamento e sua transmissão é bastante documentada. Água fornecida descontinuamente gera a necessidade de armazenamento precário, gerando focos para o mosquito; esgotos a céu aberto geram empoçamentos e focos; coleta de lixo inadequada explica muito da ocorrência da doença e, finalmente, a drenagem inadequada também gera empoçamento das águas de chuva.
Certamente as mudanças climáticas potencializam a transmissão das arboviroses, pois geram mais chuva e mais calor, favorecendo a disseminação de criadouros dos mosquitos. No caso do surto atual pelo qual passa o Brasil, é desafiante se pensar em uma explicação única e simplificada para a explosão de casos, ou atribuir exclusivamente às mudanças climáticas, mas certamente o aquecimento, as chuvas e condições inadequadas de saneamento são parte de uma teia de fatores explicativos.
Comunicação Abrasco: O Brasil é um país com uma grande riqueza hídrica e potencial para ser uma grande liderança global na luta pelo acesso à água. O que você acredita que está nos impedindo de ocupar este lugar e que lição o Brasil poderia oferecer para o mundo quando falamos sobre acesso adequado à água e saneamento?
Leo Heller: Podem-se considerar duas dimensões quando se aborda a gestão da água: a água superficial, subterrânea e pluvial, tal como se encontra na natureza, e a água como serviço de saneamento. No Brasil, essas duas dimensões vem sendo tratadas institucionalmente de forma desconectada, muitas vezes resultando em fragmentação nas políticas. Por outro lado, nem sempre a abundância de água na natureza se converte em acesso das populações a serviços adequados. Um exemplo é a região Norte do Brasil, detentora de imensas riquezas hídricas, mas que, ao mesmo tempo, exibe os piores indicadores de acesso aos serviços de água. Portanto, o que explica esse acesso está muito mais na esfera das políticas públicas e da gestão do que na disponibilidade de água nos rios e aquíferos. Para que o Brasil se torne um exemplo mundial na gestão da água em ambas as dimensões, é ainda necessário avançar muito nas políticas públicas, integrando os entes federativos e assegurando estabilidade temporal que resista às mudanças governamentais.