Nesta sexta-feira (31/7) a Associação Brasileira de Saúde Coletiva enviou uma carta ao Ministério da Saúde (MS), requisitando que a autoridade sanitária suspenda o Guia Prático de Gestão em Saúde no Trabalho para Covid-19 , publicado na semana passada (20/7). O documento, divulgado pelo MS e pela Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt), apresenta “conflitos éticos, técnico-científicos e institucionais”. A Abrasco também solicita a participação da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador na elaboração dessas orientações.
Além do Ministério da Saúde, receberam a carta o Conselho Nacional de Secretários da Saúde (CONASS), o Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e o Conselho Nacional de Saúde (CNS). Leia na íntegra:
Em 20 de julho de 2020 a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde e a Associação Nacional de Medicina do Trabalho (Anamt) publicaram o “Guia Prático de Gestão em Saúde no Trabalho para Covid-19”, com o objetivo de, segundo a publicação: a) orientar Médicos do Trabalho e gestores na adoção de medidas protetivas de prevenção individual e coletiva à transmissão pelo SARS CoV-2 nos ambientes de trabalho, preservando assim a saúde dos trabalhadores; b) orientar a conduta de investigação diagnóstica; c) orientar quanto às condutas frente à trabalhadores positivos para COVID-19 ou contactantes de pessoas com COVID-19 entre outras situações e d) orientar quando à investigação de nexo causal entre trabalho e COVID-19 [1].
Após leitura cuidadosa e criteriosa do texto, a Abrasco vem manifestar sua discordância com muitas das orientações contidas no documento, decorrentes de conflitos éticos, técnico-científicos e institucionais, bem como com a falta de transparência em sua confecção. Com base nesses termos, solicita seu recolhimento para rediscussão.
- A ausência da participação na elaboração do referido documento do Departamento de Saúde Ambiental, do Trabalhador e Vigilância das Emergências em Saúde Pública, da Secretaria de Vigilância à Saúde do Ministério da Saúde (DSAST/SVS/MS), considerando que a Coordenação-Geral de Saúde do Trabalhador e a Vigilância das Emergências em Saúde Pública são interlocutores legítimos em temas de interesse do campo da saúde dos trabalhadores, particularmente no que se refere ao caráter de emergência sanitária de dimensão internacional da Covid-19.
- É evidente a preponderância dos interesses corporativos expressos no documento, em detrimento dos reais compromissos com a Saúde Pública, com a Saúde dos Trabalhadores e com a Vigilância das Emergências em Saúde Pública. O texto expressa grave conflito ético entre interesses e compromissos públicos com a saúde e interesses privados.
- O documento não define claramente o público alvo do guia dirigindo-se, indiscriminadamente aos Médicos do Trabalho e aos Gestores, sem definir que gestores, se do setor público, do SUS, se aos empregadores do setor privado e não contempla orientações para os trabalhadores do grande setor informal no país.
- Em geral, as orientações de condutas clinicas-epidemiológicas contidas no guia são superficiais, confusas e estão desatualizadas, sendo que em alguns trechos estão equivocadas. A caracterização clínica da doença, especialmente suas formas graves e manifestações sistêmicas, é minimizada e, até, ocultada.
- A orientação da prescrição de medicamentos, especificamente o Difosfato de Cloroquina, o Sulfato de hidroxicloroquina e a Azitromicina nas fases precoces da Covid-19, embora conste das diretrizes atuais do próprio Ministério da Saúde, também configura um desvio ético e um equívoco técnico, tendo em vista a ausência de comprovação científica da eficácia desses medicamentos e os pareceres e recomendações, no mesmo sentido, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e da própria Organização Mundial da Saúde. Afora, recomendar que médicos do trabalho responsabilizem-se por atendimento e condutas clínicas (como seria o caso de receitar esses medicamentos) extrapola a previsão legal das atribuições desses profissionais, o que trará questionamentos éticos e legais.
- Por outro lado, pouco se refere às atribuições e responsabilidades da rede de atenção e vigilância em saúde do trabalhador no âmbito do SUS, que tem por princípios a universalidade, a integralidade e a participação e o controle social da comunidade dos trabalhadores, e que atua articulando práticas e mobilizando conhecimentos multi e transdisciplinares, com experiências concretas de enfrentamento da pandemia nos estados e municípios.
- As medidas de prevenção são insuficientes e superficiais considerando a centralidade e a eficácia daquelas que já se encontram comprovadas como o distanciamento físico, a lavagem de mãos, o uso de máscaras, o isolamento de contactantes, utilização de barreiras físicas nos ambientes, entre outras, segundo as orientações da OIT e da OMS. Também os conteúdos sobre medidas administrativas e de adequação da organização do trabalho, sob responsabilidade dos empregadores (públicos ou privados), são insuficientes.
- O documento não estabelece com clareza a conduta correta da empresa em relação aos trabalhadores contaminados: se os afastam ou não do trabalho. Em muitas situações empresas, no Brasil, têm mantido trabalhadores com RT-PCR positivo em atividade de trabalho, contribuindo para o aumento da disseminação do vírus Sars-Cov-2.
- As recomendações referentes ao período “pós-pandemia” são equivocadas, tendo em vista que a pandemia no Brasil não está ainda sob controle, observando-se taxa de contágio acima das recomendadas pelas agências internacionais por semanas consecutivas, além da grande desigualdade regional existente no país.
Pelas razões expostas, a Abrasco reitera a recomendação de imediata suspensão do Guia e recomenda que o Ministério da Saúde, enquanto autoridade sanitária máxima do país elabore e publique documento orientador, considerando: a) todos os trabalhadores e trabalhadoras, independentemente do tipo de vínculo e da categoria profissional; b) a contribuição de muitas atividades de trabalho na determinação e na dinâmica de disseminação da pandemia, a exemplo dos sepultadores, dos trabalhadores de frigoríficos, de fábricas diversas, do comércio e serviços, dos petroleiros, dos mineiros, dos trabalhadores apoiados por aplicativos, de transporte, de construção civil, além dos da saúde e outros serviços essenciais que não puderam paralisar suas atividades; c) É importante ainda considerar o deslocamento para e do trabalho como fatores de risco para a pandemia; d) a questão da relação com o trabalho; e) a questão das ações de vigilância nos ambientes de trabalho; f) a notificação dos casos; g) a adoção de medidas de promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, embasadas no conhecimento científico etc. Para tanto, é fundamental a participação da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador na elaboração dessas orientações, considerando a experiência já em andamento da própria Rede Nacional de Saúde do Trabalhador (Renast) e em consonância com as propostas contidas no Plano Nacional de Enfrentamento à Covid-19 apresentado pelo Movimento Frente pela Vida.
Atenciosamente,
Gulnar Azevedo e Silva
Presidente da Abrasco
Associação Brasileira de Saúde Coletiva
[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE/ANAMT – GUIA PRÁTICO DE GESTÃO EM SAÚDE NO TRABALHO PARA COVID-19. Brasilia, 20 de julho de 2020. Disponível em https://www.anamt.org.br/portal/2020/04/07/guia-pratico-anamt-sobre-covid-19