Há um sério impasse na tentativa de ocultar dentro do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias tudo o que a sociedade brasileira e, em especial, os governos não conseguem pactuar honesta e estruturalmente no texto permanente da Constituição de 1988.
Parafraseando Oscar Wilde, em sua célebre obra “O Retrato de Dorian Gray”, o ADCT tem se comportado como uma imagem horrenda e cínica da nossa realidade, enquanto o texto constitucional permanente segue formalmente belo e atraente em suas promessas civilizatórias de dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais oponíveis ao Estado.
Nossa comparação é triste e forte, porque ela remete à duplicidade moral do jovem Dorian Gray que vende sua alma e deposita na pintura escondida toda a sua corrupção física e espiritual, para que a sua aparência exterior falsamente seja mantida jovem, bela e impecável. O medo de envelhecer e o excessivo apego à aparência superficial marcam o cinismo e a hipocrisia moral na adoção de subterfúgio como um retrato que apenas formalmente carrega consigo o peso da decadência da alma de quem nele busca esconder suas face e identidade reais.
Se considerarmos que a nossa Constituição celebrará na próxima semana seu 28º aniversário, a tensão entre o que é permanente e o que é transitório quanto aos seus preceitos fundamentais e à sua aplicação concreta soa como absolutamente sintomática do nosso mal estar.
Mas sobre qual mal-estar especificamente estamos a debater? Com o devido perdão pelo trocadilho, alega-se, cada vez mais, que o Estado de Bem-Estar Social desenhado na Constituição não cabe no PIB e, por conseguinte, no orçamento público. Ocorre, contudo, que quem questiona o peso das despesas referidas ao custeio dos direitos fundamentais, opaca e maliciosamente tem se valido da majoração exaustiva das hipóteses de receitas a eles vinculadas para realocar o produto da sua arrecadação, de forma tergiversadora, em outras finalidades.
O que tem sido posto em xeque no Brasil, ao longo dessas quase três décadas de Constituição Cidadã, é exatamente o arranjo constitucional de financiamento dos direitos sociais e, em especial, a relação de proporcionalidade entre receitas e despesas públicas destinadas a tal desiderato.
Eis o contexto em que a Emenda Constitucional 93 e a PEC 241, ambas de 2016, parecem nos dar prova do quanto o ADCT tem se prestado a esconder histórica e cinicamente os conflitos distributivos do orçamento público no país e, em especial, na União.
Do ponto de vista das finanças públicas, esses dois fluxos normativos elucidam o dilema moral em questão: a desvinculação parcial de receitas, cuja vigência “transitória” está constitucionalmente projetada de 1994 até 2023 (quase 30 anos!) e agora, mais recentemente, a proposta de um “Novo Regime Fiscal” para os próximos 20 anos.
No primeiro caso, vemos nos artigos 71, 72 e 76 do ADCT a instituição e sete sucessivas prorrogações da desvinculação de receitas da União – DRU, ainda que por meio de nomes e regras parcialmente distintas, por meio de oigo (oito, frise-se![1]) emendas à Constituição.
Sua origem remonta à Emenda de Revisão 1/1994, quando a regra transitória e excepcional de desvinculação era chamada de “Fundo Social de Emergência” (FSE). Foi prorrogada, mediante pequenas alterações de conteúdo e forma — ao longo das Emendas 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011, tendo sido renomeada, ao longo do tempo, para “Fundo de Estabilização Fiscal” (FEF) e, ao final, para “Desvinculação de Receitas da União” (DRU).
O último (no sentido do mais recente) episódio dessa sequência ocorreu no último dia 8 de setembro de 2016, quando foi promulgada a Emenda 93, com efeitos retroativos a 1º de janeiro deste ano. Não bastasse o desarranjo fiscal de tal vigência retroativa ser aprovada no mês de setembro em face de uma execução orçamentária que já estava no último quadrimestre do exercício financeiro em curso, essa 8ª Emenda Constitucional de desvinculação de receitas prorrogou a DRU até 31 de dezembro de 2023, ampliou o patamar de “flexibilização” de 20 para 30% e também abriu a possibilidade da sua adoção para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (DRE, DRDF e DRM), na forma dos artigos 76-A e 76-B acrescidos ao ADCT.
Ora, tal cenário revela, em maior ou menor medida, o grau da incompetência governamental em promover o debate sobre reforma tributária em nosso país, além de mitigar a própria higidez do Orçamento da Seguridade Social, nos moldes em que ele foi concebido no artigo 165, parágrafo 5º, III e no artigo 195 da Constituição.
Por outro lado, a PEC 241/2016 tem como eixo estruturante a fixação de limite máximo (vinculação negativa?) para a despesa primária total de cada Poder ou órgão autônomo, a partir de regra geral de limitação de quaisquer gastos excedentes ao patamar do quanto houver sido pago em 2016 e corrigido monetariamente pela inflação verificada no ano anterior.
O teto global para despesas primárias ali concebido visa aprimorar o modus operandi já existente de metas fiscais anualmente fixadas na lei de diretrizes orçamentárias (conforme prevê o artigo 4º da LRF), onde a contenção de despesas autorizadas em face das receitas estimadas (contingenciamento) objetivava assegurar o alcance daquelas metas, com destaque para a meta de resultado primário.
Com a PEC 241, o regime fiscal de formação de saldos positivos para o pagamento, direta ou indiretamente, das despesas financeiras passará a ser um comando constitucional abstrato (regra de crescimento real nulo para o conjunto das despesas primárias), com vigência estimada de 20 anos e cuja finalidade primordial é mitigar até mesmo a exigibilidade das despesas primárias obrigatórias.
Aliás, a metodologia do ajuste fiscal ora avaliado reside precisamente na paulatina e previsível situação de descasamento entre receitas crescentes e despesas primárias estagnadas, ao longo dos próximos 20 anos. O eventual saldo positivo em tal equação será, em tese, destinado à redução dos encargos da dívida pública, para manter sua sustentabilidade intertemporal.
A proposta em comento descontrói a proporcionalidade entre receitas e despesas que rege a fronteira máxima da dotação orçamentária e mesmo do contingenciamento, vez que a possibilidade de realização da despesa depende, sobretudo, do ingresso da receita e, por conseguinte, do cumprimento das metas fiscais. Na PEC 241, todavia, tal proporcionalidade cai por terra e o teto fiscal se autonomiza em face da execução orçamentária em sua dinâmica real.
Não é sem razão que a maior controvérsia[2] do “teto fiscal” está na mitigação dos pisos de custeio da saúde e da educação, na forma do art. 104 que a PEC pretende inserir no ADCT. O alegado “Novo” Regime Fiscal dispõe que os porcentuais previstos nos artigos 198 e 212 da Constituição deixam de ser referência para os gastos mínimos em tais direitos fundamentais por 20 anos, vez que estará assegurada apenas a correção monetária do quanto for pago no ano anterior, a começar de 2016.
Aqui a alteração no ADCT para impor uma contenção linear de crescimento real zero para as despesas primárias da União, independentemente dos deveres constitucionais e das demandas sociais, esconde a nossa histórica incompetência quanto ao controle anual sobre as receitas e as despesas. Daí decorre o caráter absolutamente frágil e insuficiente da avaliação das metas fiscais, inclusive para fins de concessão de renúncias de receitas, geração de novas despesas, dentre as quais, em especial, despesas com pessoal ativo e inativo, bem como incentivos creditícios ao mercado.
Não é admissível adiar, por até vinte anos, as obrigações impostas ao Poder Público para que venha a ser assegurado um regime fiscal que, por concepção, discrimina despesas primárias em face das despesas financeiras, sem qualquer limite ou baliza para essas e sem qualquer proporcionalidade equitativa entre aquelas e o fluxo das receitas.
O mais dramático é que, tanto no que se refere à DRU (e suas congêneres DRE-DRDF-DRM), quanto no que diz respeito ao teto fiscal, a promessa de soluções fáceis para problemas antigos e complexos põe a perder estruturalmente o custeio constitucionalmente adequado dos direitos sociais, notadamente a seguridade social (em seu tripé previdência, assistência social e saúde) e a educação.
Em ambos os casos, cabe o aviso de que tais comandos no ADCT não podem simplesmente suspender a eficácia imediata dos direitos fundamentais, de que trata o artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição de 1988.
Ao nosso sentir, tanto a EC 93/2016, quanto o artigo 104 a ser inserido no ADCT pela PEC 241/2016 são inconstitucionais, por darem causa a uma espécie de opacidade e profunda frustração das finalidades constitucionais, como se fossem expressão caricata do “Retrato de Dorian Gray” na relação entre o ADCT e a Constituição de 1988.
Por adotar o mesmo percurso da desvinculação de receitas, a proposta de teto fiscal avoca para si a condição de antídoto amargo, mas provisório para ser instituído nas disposições constitucionais transitórias, sem dialogar estruturalmente com o texto permanente da Constituição Federal.
Ora, do ponto de vista das vinculações orçamentárias que amparam o custeio dos direitos fundamentais, intervenções graves e desproporcionais sobre a eficácia deles têm sido formalmente justificadas (em um primeiro momento) por sua alegada transitoriedade e pela tentativa de mitigação “inevitável” de crises fiscais e econômicas ditas incontornáveis por outras vias, mas têm se perpetuado cinicamente no ordenamento pátrio há décadas.
A desvinculação de receitas desde 1994 até 2023 e o congelamento dos pisos de custeio da saúde e da educação por 20 anos de que trata o artigo 104 a ser inserido no ADCT pela PEC 241 não são transitórios, tampouco proporcionais em sua pretensão de ajuste fiscal, tamanho o redesenho feito em relação ao financiamento constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais.
O caráter abusivo do manejo do ADCT, nesses casos, reside na falsa alegação de que a transitoriedade e a excepcionalidade do “Novo Regime Fiscal” e, antes dele, do FSE/FEF/DRU operariam como medidas de proporcionalidade para a intensidade e a gravidade da intervenção sobre direitos fundamentais. Seriam medidas drásticas de suspensão do dever de progressividade da seguridade social e, em especial, dos direitos à saúde e à educação, que teriam prazo de vigência delimitado. Mas 20 ou 30 anos, embora sejam prazos definidos, não podem jamais significar, a qualquer título, algo transitório.
Vale lembrar que o conceito de transitoriedade no Direito Financeiro, em regra, não ultrapassa o patamar máximo de dois exercícios financeiros. É o que depreendemos, por exemplo, dos seguintes prazos:
— 180 dias na situação de emergência ou calamidade pública, apta a justificar hipótese de dispensa de licitação (art. 24, IV da Lei 8.666/1993);
— 12 meses como referência temporal do conceito de dívida consolidada (artigo 29, I da LRF e artigo 98 da Lei 4.320/1964) e seu contraste com a noção de dívida flutuante (artigo 92 da Lei 4.320/1964);
— 2 anos de vigência para firmar a noção de despesa obrigatória de caráter continuado da LRF (artigo 17) e, até mesmo,
— 2 anos de durabilidade para a distinção entre material de consumo e material permanente, na forma do artigo 15, parágrafo 2º da Lei 4.320/1964.
À luz de todas as hipóteses exemplificativas acima, a conclusão que cabe inferir é a de que rigorosamente nenhuma possibilidade há no ordenamento brasileiro vigente para se reputar transitório marcos tão longevos como os da DRU e da PEC 241.
Enquanto as sereias cantam promessas de ajuste fiscal fácil (embora doloroso) e de postergação da necessária reforma tributária via ADCT, nossa Constituição perece a perda da sua identidade nuclear. O retrato que fica, às vésperas do seu 28º aniversário, é o de uma sociedade cinicamente administrada por quem não é capaz de, em seu nome e com ela, gerir legitimamente os conflitos distributivos do orçamento público.
Nossa Constituição Cidadã se olha no “retrato” do ADCT e duvida caber no orçamento, mas (tamanha a devassidão da realidade) parece esquecer que as receitas e as despesas estatais somente são legítimas à luz daquilo que o texto permanente definiu ser a sua feição primordial, a saber, a promoção dos direitos fundamentais e, por óbvio, a dignidade da pessoa humana.
[1] Ver PINTO, Élida G. Seis vezes DRU: flexibilidade orçamentária ou esvaziamento de direitos sociais? De jure: revista jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, n.11, p.511-537, jul./dez., 2008
[2] Como se pode ler em Custeio mínimo dos direitos fundamentais, sob máxima proteção constitucional, Financiamento dos direitos à saúde e à educação: mínimos inegociáveis, Suspender ou adiar custeio de direitos fundamentais nem deveria ser cogitado e Ajuste fiscal, eficiência e pisos em Saúde e Educação
* Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Artigo publicado originalmente na revista eletrônica Consultor Jurídico, de 27 de setembro de 2016. Clique aqui e acesse a publicação original.