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Adiante e além: Portal ESPJV cobriu abertura do Abrascão 2018

Portal EPSJV - EPSJV/Fiocruz

Um público in loco com 3 mil pessoas lotou o auditório Marilelle Franco| Foto: Abrasco

No começo, foi com hesitação que o presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) abriu os trabalhos do 12º congresso da entidade. Mas os 7,5 mil participantes do evento – que, não por acaso, é conhecido como Abrascão – entraram em cena e não deixaram a pausa perdurar. O momento é duro, mas a salva de palmas e os gritos de resistência contra o desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) parecem sugerir que vai haver luta. “A esperança somos nós”, assegurou Gastão Wagner, em nome da Abrasco.

E parte dessa esperança parece morrer e renascer, muitas vezes. O primeiro ato do congresso, conhecido por sempre equilibrar ciência e ação política, foi homenagear uma figura simbólica que tombou pelo caminho, lutando por justiça social, igualdade racial e de gênero: a vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco, assassinada no dia 14 de março, num crime até agora sem solução que também vitimou seu motorista, Anderson Gomes. Mas se do asfalto pode romper uma flor, como diz o poema, do corte dessa flor podem brotar muitas mais, como diversas militantes estamparam nas redes sociais nos atos que tomaram as ruas do país em denúncia ao crime. “É Marielle, é a Uerj, é a Fiocruz; é isso que nos simboliza”, demarcou Gastão, se referindo às duas instituições públicas que abrigam, respectivamente, o pré-congresso (que aconteceu nos dias 24 e 25 de julho) e o Abrascão, que começou hoje e vai até domingo (29).

Gastão, que se despede da gestão da entidade neste evento, quando será empossada a nova diretoria da Abrasco, explicou que resistir e avançar foi o programa da chapa. “Por que resistir? Esses dois anos de golpe midiático, parlamentar e jurídico não serão capazes de desconstruir 30 anos de SUS, a rede de universidades públicas, o movimento feminista, que não deixa para amanhã a luta que precisa ser feita hoje, o movimento negro…”, enumerou.  Para ele, se conseguiu fazer um ataque “duro” ao direito ao trabalho, à dignidade. “Restringiram a democracia, que já era imperfeita”, notou. Mas o movimento da Reforma Sanitária, insiste, precisa combinar os avanços conquistados, o reconhecimento dos problemas que a população enfrenta na sua relação com o SUS e ter propostas concretas para conseguir avançar.

E brincou que o “sanitarista” Antonio Candido (professor de literatura da Universidade de São Paulo, a USP, e intelectual brasileiro) tinha uma caracterização para as diferentes atitudes brasileiras diante das desigualdades do país. O primeiro grupo, é claro, se constitui pelos opressores. “Pessoas autoritárias, que querem mais autoritarismo, mais concentração econômica”, descreveu. Mas é na distinção entre o segundo e o terceiro que repousa a chave para compreender o Brasil, acredita ele. “O suposto [grupo] contra o status quo é chamado por ele de gente que tem consciência amena do atraso. É formado por grande parte da nossa elite, que ter poder de vocalizar sua mensagem e diz que não tem jeito para o SUS, para a violência, para as cidades, que o Brasil é um país do capitalismo periférico não tem saída”, disse. E emendou: “O terceiro grupo é o da consciência agônica do atraso, que acredita que não dá para ficar no marasmo, no chororô, na dramatização como se o SUS fosse pouco, como se termos fechado 50% dos leitos nos hospitais psiquiátricos fosse pouco, como se ter milhões de estudantes nas universidades fosse pouco. Temos que buscar reconhecer a construção social da esperança”.

O projeto da Reforma Sanitária, segundo ele, é o projeto da população brasileira que quer uma reforma tributária progressiva, uma política de desenvolvimento econômico integrada ao desenvolvimento humano e ao equilíbrio ambiental do planeta. “O SUS tem jeito”, defendeu. “Podemos ter mais dinheiro. Mas precisamos aprender a comunicar para a população onde vai ser gasto esse dinheiro. Na construção de unidades básicas, em hospitais em áreas desassistidas, em uma política de pessoal para a saúde que acabe com a rotatividade, a terceirização e a fragmentação dos vínculos. É possível diminuir o poder de prefeitos, governadores e do governo federal, e funcionar, como é a Fiocruz, uma instituição de Estado, e dar maior controle à sociedade”, enumerou.

[youtube https://www.youtube.com/watch?v=5F6Ri3p_djc?list=PLWGsEtFn0h_JDzz1e65WhtMSnU8_rptn0&index=20]Assista cerimônia de abertura completa

Segundo ele, a mudança precisa começar por cada um e por cada entidade, partido político e sindicato. “A Abrasco procurou ser mais democrática, mais participativa, mas na nossa diretoria não havia nenhum ser humano negro. Na próxima, teremos um diretor negro e duas diretoras negras, de 20. Precisamos de equidade de gênero e de etnia, e tentamos pensar nisso na composição das mesas do congresso. Precisamos ter maior capacidade de trabalhar para frente. A capacidade que temos de construir para resistir e lutar depende essencialmente da mudança na sociedade, em nós, no nosso machismo, autoritarismo, etc.”.

O presidente da Abrasco terminou falando sobre a situação singular que a entidade viveu na sua relação com o governo Michel Temer. “O governo federal se transformou em adversário da Abrasco”, disse. “Somos uma entidade de oposição, mas apartidária”, frisou, em referência à consulta às bases da entidade, em que os associados definiram que o impeachment de Dilma Rousseff deveria ser tratado pela Abrasco como “golpe”.

Gastão concluiu com uma referência direta à situação do ex-presidente Lula, candidato às eleições que ocupa o primeiro lugar nas intenções de voto, segundo as pesquisas de opinião, e, condenado em segunda instância e preso, está impedido judicialmente de participar do processo eleitoral. “Essas eleições têm um incômodo. Lula, que é quem tem mais apoio popular, não pode fazer campanha por causa de um processo esdrúxulo, arbitrário”, disse, para acrescentar: “Esse compromisso é de todos os democratas, independente de votarem nele ou não”.

Também para o reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Leher, o momento é delicado. “Nenhum de nós pode silenciar diante da sucessão presidencial que, por meio de um processo construído a partir de uma racionalidade política deliberada, retira de Lula a possibilidade de pleitear a Presidência da República”. Para ele, estamos vivendo um contexto de autocracia.

“Florestan Fernandes dizia que o padrão de acumulação do capital é cada dia mais incompatível com a sociedade democrática. E é este o significado das brutais transformações regressivas, da mudança extraconstitucional de governo [que ocorreu] em 2016”. Para ele, é importante que ninguém perca de vista que todos os centros e espaços públicos que produzem conhecimento estão ameaçados. “Na Universidade Federal de Santa Catarina, a ofensiva policial-judiciária levou o reitor ao suicídio. Um suicídio político, por não ter aceitado o aparato que o violentou. Temos o assassinato de Marielle, que para além da narrativa que está sendo construída pelos grandes meios, foi político. O que está acontecendo quando professores dão cursos e são criminalizados? Defendem o aborto e são criminalizadas judicialmente? Tudo indica para um brutal retrocesso na esfera democrática”, lembrou. E por isso mesmo, acrescentou, é necessário que entidades como a Abrasco revitalizem o SUS, a democracia e os direitos sociais.

“O sistema de saúde é uma construção ético-politica fundamental para os povos. Afirma a igual humanidade de todos que têm rosto humano e, ao fazê-lo, está afirmando uma concepção de mundo, de sociedade e de saúde. Temos hoje no campo da saúde uma enorme ofensiva do setor privado que não é mais tradicional. Trata-se de fundos de investimentos, operadores financeiros que atuam na saúde como negócio que tem que ser rentável no ritmo dos investimentos financeiros. E isso é uma mudança radical”, disse Leher.

Para ele, o SUS está ameaçado pela corrosão dos direitos sociais. “A EC [Emenda Constitucional] 95, não tenho dúvidas, não é um ato típico de responsabilidade fiscal, mas uma forma de empurrar goela abaixo de todos os brasileiros e os que vivem aqui uma contrarreforma brutal do Estado. E que, de fato, coloca hoje todas as conquistas e particularmente a universalidade do SUS em risco”, afirmou. Para ele, o caminho é direcionar a nossa capacidade criadora das instituições públicas para construir alianças.

“A história nos ensina que enfrentar as regras de uma tradição imposta sempre foi e sempre será uma luta contrahegemônica. Que marca estamos escrevendo?”, disse, por sua vez, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Ronald Santos. Para ele, a resistência acontece, apesar de tudo. “Que força é esta que pulsa em nós? Há algo de inexplicável e sublime ao mesmo tempo, diante do massacre que faz com que estejamos juntos aqui”, observou.

Também para a presidente da Fiocruz Nísia Trindade, o Abrascão é um momento de recarregar as baterias para muita luta que precisa ser travada não só aqui, mas em todo o mundo: “O Abrascão é quase um Abração, um grande abraço que nos damos pela importância de nos reunirmos nesta manifestação pela saúde e pela democracia, não só no Brasil, mas de todos os povos, especialmente os latino-americanos”.

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