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Água: Direito humano – Entrevista de Léo Heller ao Idec

Comunicação Abrasco com informações da Revista do Idec

A falta d’água em estados do Sudeste brasileiro trouxe à tona a discussão sobre o acesso a esse serviço como direito básico dos cidadãos. Mas, para além dessa crise, o Brasil vive um significativo déficit de saneamento: apenas 59,4% dos cidadãos recebem atendimento adequado de abastecimento de água e menos ainda, 39,7%, têm acesso apropriado a esgotamento sanitário, segundo dados do Plano Nacional de Saneamento Básico, de 2013.

Diante desse contexto, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) entrevistou Léo Heller, Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Água e Saneamento, pesquisador da Centro de Pesquisas René Rachou (CPRR/Fiocruz) e membro da Abrasco. Heller será um dos destaques da 27ª Conferência Internacional de Epidemiologia Ambiental – ISEE 2015 o e irá falar na plenária desta terça-feira, 1º de setembro, com a comunicação Water, Sanitation and Human Rights. Confira abaixo a entrevista na íntegra na qual explica o trabalho como relator da ONU; as implicações, em termos de políticas públicas, de considerar a água e o saneamento como direito humano básico e analisa o cenário brasileiro em relação aos demais países. Leia também diretamente no site do Idec.

Idec: Primeiramente, qual é o papel do relator especial da ONU sobre água e saneamento?

Léo Heller: O relator cumpre diferentes atividades, como a realização de missões a países para verificar o atendimento à resolução das Nações Unidas, que reconhece o acesso à água potável e ao esgotamento sanitário como direito humano básico. Outra atividade importante é a preparação e a apresentação de dois relatórios temáticos anuais, um destinado à Assembleia Geral e o outro à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Esses relatórios buscam aprofundar a discussão sobre as implicações do reconhecimento desse direito humano, as situações de violação dos direitos, apresentar bons exemplos da gestão dos serviços etc. O relatório que apresentarei em 2015 para o Conselho de Direitos Humanos versa sobre a acessibilidade financeira; para a Assembleia Geral, será sobre como diferentes níveis de serviços de água e esgoto se relacionam com a definição dos direitos humanos.}

Idec: Em abril, em sua visita a São Paulo, o senhor afirmou que via indícios de violação de direitos humanos na crise de abastecimento que afeta o Estado. Quais situações podem caracterizar violação de direitos humanos em relação ao acesso à água?

LH: Além dos princípios gerais que se aplicam a todos os direitos humanos (como igualdade, participação, transparência e acesso à informação), no caso específico do direito à água e ao esgoto sanitário, os chamados conteúdos normativos devem também ser respeitados, os quais incluem disponibilidade, acessibilidade física, acessibilidade financeira, qualidade e segurança, aceitabilidade, privacidade e dignidade.

Durante a minha visita a São Paulo, ouvi importantes depoimentos sobre as consequências da escassez de água pela qual passa parte do Estado. Muitas pessoas afetadas, ou organizações que se ocupam das populações mais vulneráveis, relataram a experiência quotidiana de viver em tais condições. Observei indícios de violações, mas será necessária uma avaliação mais aprofundada antes de se qualificar mais categoricamente as circunstâncias em que a escassez de água vem ocorrendo.

Idec: Se constatado que houve violação de direitos, quais medidas a ONU pode tomar e como o Estado brasileiro poderia ser responsabilizado?

LH: Existe um processo confidencial de comunicação entre o relator especial (às vezes vários, a depender da natureza da violação) e o governo do país, que tem um prazo definido para investigar as alegações e preparar uma resposta a respeito. A urgência do caso determina o tempo que o relator oferece ao governo para responder, que geralmente não ultrapassa 60 dias. Depois desse prazo, e à luz da resposta do país, o relator tem o direito de divulgar publicamente as informações do caso de violação e suas preocupações em relação a ele.

O Estado brasileiro, como membro das Nações Unidas, assinou vários pactos internacionais que representam compromissos de respeitar, proteger e realizar os direitos humanos. Portanto, em caso de ocorrência de uma ou várias violações desses direitos, o Brasil tem a obrigação de eliminá-las e, caso necessário, procurar assegurar reparação às vítimas.

Idec: Quais são as consequências do atraso brasileiro em relação ao acesso adequado à água e ao tratamento de esgoto?

LH: Uma das principais consequências é o risco à saúde humana. Sistemas adequados de abastecimento de água, com fornecimento em quantidade adequada e com qualidade compatível com o padrão de potabilidade, são comprovadamente mais seguros para a saúde. Além disso, contribuem para a igualdade de gênero, para a redução da pobreza e para o desenvolvimento econômico. Raciocínio similar aplica-se ao esgotamento sanitário, que além de proteger a saúde humana, tem importantes implicações para a proteção ambiental. Com o padrão de desenvolvimento almejado pelo Brasil, a situação de saneamento básico deveria ser mais adequada.

Idec: Como o Brasil se insere no cenário global de acesso à água e ao saneamento?

LH: As estatísticas de acesso ao abastecimento de água e de esgotamento sanitário apontam a necessidade de o país melhorar o seu atendimento. Porém, o Brasil não se destaca nem por ser melhor nem pior em comparação com outros países em desenvolvimento, como a maioria dos da América Latina. Há tendências similares nesses países: o atendimento ao meio urbano é superior ao do meio rural; o abastecimento de água é superior ao esgotamento sanitário. Há também certa cultura de prestação de serviços que explica, de certo modo, essas tendências. Pautados em lógicas de recuperação de custos a curto prazo, muitos prestadores são naturalmente atraídos por centros urbanos, onde se concentram muitos usuários e que asseguram maior arrecadação financeira.

Entendo que a adoção de uma lógica orientada pelos princípios dos direitos humanos privilegiaria a extensão dos serviços para os que mais precisam, por exemplo, para as populações de vilas e favelas e a rural. Os custos podem ser mais altos para atender a essas populações, que muitas vezes não possuem condições financeiras suficientes, mas isso não deve ser desculpa para não se prover o seu acesso aos serviços. Cabe aos governos e aos prestadores de serviço garantir que o acesso seja universalizado e, em primeiro lugar, seja garantido para as populações mais vulneráveis.

Idec: Outro problema no país são as perdas de água na rede de distribuição: a média nacional é de 36,6%, mas chega a 76,5% no Amapá. Qual é a solução para essa questão e de quem é a responsabilidade por implementá-la?

LH: A redução de perdas, realmente muito elevadas no país, é parte do conjunto de atividades da gestão dos serviços, de responsabilidade do prestador, que pode ter incentivo por parte de órgãos financiadores. Pode-se apontar, uma vez mais, certa cultura do prestador de serviço, que prefere investir em novas obras de instalação de infraestrutura, em detrimento da melhoria da eficiência e efetividade dos sistemas, com investimentos na manutenção da infraestrutura existente, o que poderia evitar a necessidade dessas obras.

Idec: É possível resolver esse gargalo sem repassar os custos para o consumidor?

LH: Sim. Pois a perda não é só de água, é perda financeira também. Então, um sistema que reduz a sua perda vai também ter o benefício de uma recuperação financeira. Portanto, o investimento na redução de perdas irá se amortizar naturalmente, sem a necessidade de repassar esses custos para os usuários.

Idec: Nos últimos 15 anos, mais de 200 cidades ao redor do globo remunicipalizaram o abastecimento de água — entre elas, grandes capitais, como Paris, Berlim e Buenos Aires. Como o senhor avalia essa tendência?

LH: Alguns estudos vêm mostrando que essa é uma forte tendência nas últimas décadas. Mas em alguns casos, tem havido movimentação no sentido contrário. No caso de certas cidades, ou até países, que se veem na obrigação de implementar medidas de austeridade, como ultimamente no caso da Grécia, a tendência é que seja transferida a prestação dos serviços para o setor privado. Às vezes isso acontece por causa da decisão política local ou nacional, às vezes por exigência de instituições credoras que financiam a recuperação da cidade ou do país.

Idec: Em plena crise hídrica, a Sabesp manteve contratos que incentivam o consumo de água por grandes empresas e o repasse de lucros a acionistas. Como resolver esses conflitos entre os interesses corporativos e o interesse público de acesso à água quando há parceria com o setor privado?

LH: Pela ótica dos direitos humanos, o uso prioritário da água é para o consumo humano. Portanto, pode ser considerada uma violação quando há uma priorização de uso de água para fins econômicos em detrimento do uso humano. Não pode faltar água nas casas das pessoas! Na declaração oficial da Relatora Especial anterior [a portuguesa Catarina Albuquerque], após sua visita ao Brasil em dezembro 2013, ela defendeu que a distribuição de lucro das empresas de saneamento seja acompanhada da obrigação do Estado em reinvestir a sua percentagem inteiramente na universalização do serviço e no apoio aos mais desfavorecidos. Ela afirmou não parecer aceitável que, em um país onde ainda não há acesso universal ao saneamento e onde as parcelas mais pobres da população são excluídas, os lucros obtidos no setor sejam usados para custear as despesas correntes do Estado.

Idec: O senhor defende a inclusão do direito à água e ao saneamento na Constituição Federal. Quais consequências essa mudança traria, na prática, para o acesso a esses serviços no Brasil?

LH: A Constituição é a lei suprema de um Estado, com a qual toda outra lei ou política e, em consequência, toda atividade do Estado, deve conformar. A inclusão do direito humano à agua e ao esgotamento sanitário na Constituição Federal amplia as obrigações do Estado a respeitar esse direito humano e também amplia o direito dos cidadãos a exigir que ele seja respeitado. Essa inclusão pode provocar a adequação da legislação infraconstitucional e das políticas públicas e ensejar, por exemplo, a adoção dos princípios desse direito na revisão de políticas que não o consideram integralmente.

+ Confira a participação de Léo Heller na plenária da 27ª Conferência Internacional de Epidemiologia Ambiental

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