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Água e saneamento no centro da agenda internacional

O reconhecimento do acesso à água e ao saneamento como direitos humanos demandam esforços internacionais e científicos para a garantia de um mundo sustentável. Essa ideia central conduziu as comunicações da plenária principal (plenary lecture) do segundo dia da 27ª Conferência Internacional de Epidemiologia Ambiental, realizada em São Paulo, na manhã de 01º de setembro. Dois destacados abrasquianos apresentaram suas ideias e investigações relacionadas ao tema: Léo Heller, pesquisador do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (CPRR/Fiocruz), e Maurício Barreto, professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e também pesquisador do Centro de Pesquisas Gonçalo Muniz (CPGM/Fiocruz).

Para apresentar os brasileiros, dois destacados pesquisadores que irão dar continuidade às atividades da International Society for Environmental Epidemiology (ISEE): o italiano Francesco Forastiere, presidente da próxima Conferência anual, a ser realizada em setembro de 2016, em Roma, e o grego Manolis Kogevinas, eleito presidente para a nova gestão da Sociedade.

Na comunicação Human Rights to Water and Sanitation, Léo Heller trouxe a perspectiva a partir de seu trabalho como relator especial das Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à água potável e ao saneamento.Desde o início de sua intervenção, ressaltou a importância do momento atual para a efetivação desses desafios. “Com a definição do Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) que serão aprovados neste setembro na Assembleia Geral da Nações Unidas, temos uma importante oportunidade de discutirmos diferentes perspectivas sobre as tradicionais visões sobre o saneamento”.

Apesar de não estar expressa literalmente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, Heller pontuou diversos aspectos que possibilitaram as lideranças mundiais e os quadros do organismo a relacionarem o acesso universal à água como uma das prioridades da terceira geração de Direitos Humanos. A resolução que reconheceu o Direito à água foi aprovada na Assembleia Geral de julho de 2010 e consolidada em dezembro do mesmo ano, quando foram estabelecidas as normativas pelo Conselho dos Direitos Humanos da Organização.

Os documentos colocam como meta as condições igualitárias e não discriminatórias ao acesso à água; participação e inclusão das comunidades, povos e populações nos debates sobre os recursos, e a responsabilidade dos Estados, que deverão prover e garantir a disponibilidade, a qualidade, a acessibilidade física e econômica ao recurso. Os mesmos conceitos também compõem os direitos ao saneamento, incluindo a privacidade e a dignidade de acesso, agregados em resoluções posteriores.

Mesmo com reconhecidos avanços obtidos com os Objetivos do Milênio, o acesso à água não se tornou uma realidade universal. “Não há a discussão sobre os outros aspectos importantes para além do acesso, bem como ainda não há a cultura de acompanhamento e de monitoramento da questão pelos grandes centros de conhecimento do planeta”, explicou Heller. Cerca de 663 milhões de pessoas, ou 9% da população mundial, não têm as devidas condições de acesso, sendo obrigadas a se abastecer em fontes não confiáveis e/ou em condições depreciadas. A diferença do alcance dos recursos hídricos entre espaços urbanos e rurais diminuiu, mas persiste: Atualmente, 96% das cidades têm acesso direto à água tratada. No campo, esse percentual é de 84%.

O cenário do saneamento mundial é ainda mais desafiador. “Foi um dos pontos de menor alcance dentro dos Objetivos do Milênio”, ressaltou Heller ao apresentar os números. Apenas 95 países conseguiram avanços nesta metas e mais de 2,4 bilhões de pessoas – 32% da população mundial – não tem acesso a qualquer tipo de sistema sanitário. A discrepância entre os universos urbano e rural ainda é grande: enquanto 92% das cidades já contam com sistemas de esgoto e/ou outros sistemas formais, apenas 58% das áreas rurais têm as mesmas condições. Tal quadro está ligado diretamente à morte de mais de 1.6 milhão de pessoas por ano, em sua maioria crianças até cinco anos, por conta de doenças relacionadas à baixa qualidade da água e à falta de saneamento.

Para promover a mudança desse quadro, Heller destacou a importância do trabalho de monitoramento das condições de acesso à água e ao saneamento entre os diferentes grupos sociais, como ricos e pobres, populações com acesso a sistemas formais e informais de tratamento; segmentos marginalizados; países desenvolvidos e em desenvolvimento. “É muito importante não pensar somente nos resultados, mas no processo necessário para a redução das iniquidades”, ressaltou o relator, reforçando a perspectiva de inversão na trajetória tradicional do desenvolvimento, na qual os ricos alcançam patamares recomendados bem antes dos mais pobres. “Se acelerarmos o processo de saneamento e de acesso à água aos mais pobres, estaremos contribuindo e muito para o alcance das demais metas e objetivos”, sintetizou Heller.

A epidemiologia a serviço dos direitos humanos: Num mundo de aproximadamente sete bilhões de pessoas e com uma produção de fezes estimada em 1,4 milhão de toneladas ao dia, como avaliar a capacidade dos sistemas de esgotamento em evitar a proliferação de doenças e contribuir par ao desenvolvimento social? Essa foi uma das provocações trazidas por Maurício Barreto em sua comunicação Sanitation interventions in the urban environment in developing countries: Impacts on health and on other health determinants.

Barreto iniciou sua participação trazendo uma visão panorâmica da questão do saneamento, um debate científico histórico no campo da saúde e que remonta à formação do próprio campo disciplinar da epidemiologia, com os primeiros estudos de John Snow sobre o cólera. O saneamento é um tema tão importante, relembrou ele, que já foi considerado pela comunidade científica como uma das grandes conquistas da medicina, de igual impacto à descoberta dos antibióticos e do código genético.

“Faz parte da história da humanidade buscar formas para se afastar dos dejetos e reduzir as cadeias de contaminação pelas fezes, utilizando das técnicas mais rudimentares às mais modernas, que exigem complexas intervenções urbanísticas e de engenharia”, destacou o pesquisador ao abordar a desigual distribuição dos sistemas de tratamento no planeta: enquanto há 100% de cobertura na Europa e nos EUA, os percentuais caem conforme o grau de desenvolvimento da demais regiões continentais e subcontinentais: 83% no Oeste da Ásia ocidental; 73% no Norte da África; 62%  na América Latina; 50% no Leste asiático, 24% no Sul da Ásia; 19%  na África Sub-Saariana; e apenas 9% no Sudeste asiático.

Na sequência, o pesquisador apresentou diversas evidências produzidas pelo método epidemiológico para ressaltar o impacto das intervenções sanitárias, destacando a importância da epidemiologia na avaliação de políticas públicas na área ambiental. “São poucos os estudos que avaliam os sistemas de saneamento. Comumente, centram-se apenas em estudos a partir de usos dos sistemas mais simples e isolados, como latrinas, e não os mais complexos”, explicou ele, citando uma das poucas meta-análises que trazem esse conjunto de dados.

Um desses estudos foi conduzido por Barreto e demais cientistas e avaliou as condições de saúde de crianças até cinco anos após a implementação do programa de saneamento Bahia Azul no município de Salvador, Bahia. Iniciado em 1995, o projeto de engenharia trabalhou na perspectiva de saltar de 25% para 80% o número de domicílios ligados à rede coletora de esgoto, melhorando as condições de mais de 2.5 milhões de habitantes. O programa foi encerrado em 2004 e alcançou o percentual de 65% de instalação da rede em mais de 300 mil casas, enterrando um total de dois mil quilômetros de manilhas e adutoras nas ruas soteropolitanas.

A pesquisa foi formatada com duas coortes, realizadas de 1997 a 1998 e de 2003 a 2004. Publicada no The Lancet em 2007, apresentou resultados consistentes: houve redução de 22% da prevalência da diarreia entre a população, além da redução do tempo de tratamento da doença e a da prevalência de parasitas entre as crianças. Foram analisados também os efeitos da intervenção por regiões, o que possibilitou a comparação de locais com grande diferença social, o que exigiu, segundo o pesquisador, a construção de um complexo modelo conceitual e  de instrumentos desenvolvidos especificamente para a coleta e mensuração dos dados e a produção das análises.

Barreto ressaltou como a perspectiva epidemiológica é importante para o desenvolvimento social, tanto para a ciência quanto para a sociedade em geral e, principalmente, para a população assistida. “Quando a cobertura de uma intervenção sanitária é feita em escala e de forma efetiva, temos de fato um grande impacto na redução das iniquidades”. O estudo inicial possibilitou publicações e levantamentos secundários, que abordaram perspectivas sociais e questões econômicas. Tamanha qualidade colocou o estudo entre os indicados ao prêmio de melhor publicação da prestigiada daquele ano, concorrendo com estudos sobre genética e outros temas emergentes. O estudo sanitário ganhou repercussão também na revista Science.

Os resultados do estudo inicial levaram ainda a Barreto e demais pesquisadores a se debruçarem para pensar e avaliar a validade da hipótese higiênica. “Sabemos que os nematelmintos e demais parasitas comuns em ambientes não saneados são importantes imunoreguladores e que, quando há uma mudança no meio e o fim desse tipo de contato com humanos, isso pode trazer consequências secundárias à saúde”, explicou.

Após pesquisas feitas em conjunto com geneticistas, parasitologistas e demais epidemiologistas, Barreto descobriu que crianças expostas a ambientes não saneados apresentam grande produção espontânea da citocina L10, molécula que influencia no processo inflamatório e demais reações do sistema imunológico. Percebeu também que a melhora das condições higiênicas da humanidade ao longo do tempo e da história proporcionaram uma melhor resposta bioquímica para homens e mulheres por gerações. Os estudos foram publicados em periódicos de destaque, como o Environmental Health Perspective Journal e outros.

“Esses e outros apontamentos e pesquisas só corroboram o que Léo Heller acabou de falar: que a água e o saneamento trazem importantes melhoras nas condições de saúde; são apreendidos como valores de modernização pela população assistida; determinam e relacionam as condições socioeconômicas e as de saúde; mudam o ambiente e devem ser universais para que se obtenha bons resultados e não gerem novas iniquidades – um conceito que não se define por uma questão de ter ou não ter, mas sim de alguns terem e outros não”, disse Barreto em suas considerações finais, dando uma nova dimensão a esse debate histórico.

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