Ligia Bahia escreveu sobre a crise de água no Rio de Janeiro e a solução apresentada pelo governo do estado – a adição de carvão ativado na Estação de Tratamento de Água de Guandu – que, segundo a pesquisadora, só resolve “um dos sintomas do problema” . Bahia é professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco. O artigo “Águas, ares e lugares” foi publicado na última terça-feira, 28 de janeiro, no jornal O Globo, confira:
Florestas queimadas, contaminação da água e pessoas dormindo debaixo de marquises causam doenças que podem ser prevenidas. Desde o século V a.C., os escritos hipocráticos distinguiram ciência de religião e admitiram possibilidades de evitar elementos ambientais nocivos. O prognóstico, uma das principais conquistas da tradição hipocrática, baseia-se na compreensão dos encadeamentos e rupturas entre passado, presente e futuro, que também fundamentam os ideais da Pólis sem tirania. Uma compreensão abrangente da saúde permitiu prever, predizer e buscar alterar desfechos negativos.
Séculos depois, a experiência com a péssima qualidade da água no Rio de Janeiro dispensa o debate grego sobre as causas naturais ou religiosas das patologias. Qualquer pessoa de bom senso intui que as características predatórias das relações humanas e o extrativismo voraz dos recursos da natureza são responsáveis pela piora das condições de vida.
Água potável é um requisito para vida e fator-chave para a saúde. As crianças são particularmente vulneráveis aos efeitos da água insegura. Diarreias e exposição a poluentes inorgânicos, como arsênico, cobre, fluoreto, chumbo e nitrato, podem comprometer o desenvolvimento infantil. Existe algum consenso sobre o diagnóstico. O desafio é passar da constatação sobre o meio ambiente malsão e acusações entre governantes para o prognóstico. O que ocorrerá, caso essas tendências não sejam alteradas? Quais são as melhores estratégias para evitar mais danos à saúde? A geosmina tem mau cheiro, mas a causa da proliferação deste composto orgânico produzido por bactérias é a morte de rios pelo manejo inadequado de dejetos. Saber a origem do fedor da água e que o carvão ativado o atenua é importante, porém insuficiente para influenciar um prognóstico favorável sobre o acesso à água potável de boa qualidade.
Pesquisadores afirmam que a melhor solução seria a despoluição dos rios. Mas o governo estadual atacou, como se fosse um grande feito, apenas um dos sintomas do problema. Decidiu importar equipamento de São Paulo e carvão do Paraná para fornecer água inodora e anunciou a proposta de desviar o curso de rios. Não haverá mudança nos padrões de desigualdade do acesso à água e saneamento e na introdução de substâncias e resíduos em aquíferos, que tornam grandes quantidades de água inadequadas para vários usos.
Seria como se nos contentássemos em saber que o coronavírus do surto de Wuhan é novo e diferente do que causa SARS (Síndrome Respiratória Aguda Grave), e não houvesse preocupação com a letalidade, velocidade de contágio, espalhamento dos novos casos e com as estratégias globais de prevenção e tratamento. Quando a atenção se desloca da população sob risco para os patógenos, para os microrganismos, o prognóstico é deixado para segundo plano.
Outra rota de fuga de soluções mais efetivas para os problemas ambientais se expressa na confusão entre fatos e valores. A água é considerada por instituições internacionais de distintos matizes ideológicos como um bem comum; deveria, portanto, ter uma distribuição equânime. Houve melhoria do acesso à água no Brasil e estagnação dos serviços básicos de saneamento. Sob a discussão sempre válida, a respeito da estatização ou privatização das empresas estaduais de água e saneamento, cresce a hiper apropriação privativa da água. O fato é que a água é comercializada por caminhões-pipa e empresas que a engarrafam.
O afastamento de atitudes hipocráticas, especialmente omissão de prognósticos, estimula previsões simplificadoras. As considerações sobre as mudanças dos fatores que determinam os problemas ao longo do tempo e seus resultados dinâmicos requerem o compartilhamento de informações preditivas e reavaliações periódicas. O famoso tratado hipocrático “Ares, águas e lugares” continua atual porque estimula a adoção de processos decisórios coletivos e democráticos e questiona a conversão da abundância de recursos naturais em escassez e doenças.