Mário Sheffer, vice-presidente da Abrasco e professor da Faculdade de Medicina da USP, escreveu um artigo de opinião para o jornal Folha de São Paulo, juntamente com o médico infectologista Caio Rosenthal, sobre Aids:
Senhor futuro ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, queremos tratar de um motivo de orgulho nacional, de uma história de resiliência do Sistema Único de Saúde (SUS). Graças aos esforços de cidadãos e governos de diversos partidos, o Brasil cavou trincheira internacionalmente reconhecida na luta contra a aids e pela proteção aos direitos das pessoas com HIV.
Foi com os recursos e os profissionais do mesmo SUS –que socorreu o presidente eleito, Jair Bolsonaro, após o bárbaro atentado–, com a atuação de entidades civis e com base em sólidas provas científicas que se chegou hoje à distribuição na rede pública de 22 tipos de antirretrovirais a mais de 580 mil pessoas que dependem desses medicamentos para viver.
Não pode haver trégua diante de uma epidemia que se aproxima de um milhão de casos e mais de 350 mil mortes desde 1980 no Brasil.
A persistência de números espantosos –são 40 mil novos registros de aids e 12,5 mil óbitos por ano no país– requer ações continuadas para evitar mais infecções e garantir tratamento diário para que cidadãos HIV-positivos permaneçam bem de saúde.
A questão não é o que as pessoas são ou o que fazem, mas se a elas são asseguradas ou não possibilidades de se prevenir e se tratar.
Quanto mais discriminadas, mais expostas a se infectar estarão as populações que também não chegam facilmente ao diagnóstico e ao tratamento. A forma negativa e extrema com que muitos ainda reagem àqueles que têm HIV é uma das principais barreiras para a prevenção que, no final das contas, beneficiaria a todos. Países que trocaram essas evidências por prescrições morais e religiosas, como alguns do continente africano, colheram catástrofes de saúde pública.
Enquanto vacina e cura ainda estão fora do horizonte, o Brasil segue hesitante ao tolerar o preconceito e ao retardar inexplicavelmente medidas para que mais gente faça o teste e saiba se tem ou não o HIV. E para que todos que se descobrem soropositivos tenham a mesma chance de iniciar o tratamento no tempo certo.
Aos que já são acompanhados pela rede pública devem ser dadas condições de adesão à medicação até a supressão viral, estado que preserva a saúde individual e freia a circulação do vírus entre mais pessoas.
Como alternativa à testagem em serviços de saúde, precisam ser disseminados os testes rápidos em locais comunitários e os autotestes feitos onde for melhor para cada um.
Como o uso de preservativos pode, por vezes, falhar, deve ser facilitada no SUS a opção altamente eficaz dos medicamentos que, tomados antes ou depois do risco de se infectar, impedem a transmissão do HIV.
Para populações vulneráveis, como os jovens –a aids mais avança na faixa de 15 a 22 anos–, faltam campanhas em mídias e formatos digitais com conteúdos que não atribuam culpa e se comuniquem abertamente com as expressões de sexualidade e sociabilidade dessas novas gerações.
Completa-se com maior financiamento do SUS, para resgatar serviços de referência hoje lotados e com falta de profissionais; apoiar associações de pacientes; investir em prevenção e na produção de medicamentos genéricos nacionais, incluindo licenciamento compulsório no caso de patentes de antirretrovirais prolongadas indevidamente. Os custos de uma epidemia desgovernada, por certo, seriam infinitamente maiores.
O enfrentamento da aids sempre foi um campo de tensões e polêmicas. Mas mesmo vozes dissonantes na política e nos costumes podem, com tolerância às diferenças, atuar em nome do bem comum e da saúde coletiva, para acolher as pessoas afetadas, mobilizar a sociedade para a prevenção e não permitir um passo atrás em uma política bem-sucedida e conquistada a duras penas.
Mário Scheffer
Professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP
Caio Rosenthal
Médico infectologista