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 POSICIONAMENTO ABRASCO 

Alerta sobre privatização e desvio de finalidade das ações de saúde mental indígena

Comunicação Abrasco

Foto: Alex Pazuello/Prefeitura de Manaus

Em Ofício Circular nº 54/2021/SESAI/GAB/SESAI/MS, de 31 de março de 2021, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) determina que os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) a indicarem suas atividades de potencial produtivo para Projeto-Piloto denominado “Empreendorismo para a vida” a ser realizado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro Pequenas Empresas (SEBRAE). Tal iniciativa é indicada como parte do Projeto “Projeto Educação para a Saúde Mental Indígena”, alegadamente fundamentado na Portaria nº 2.759, de 25 de outubro de 2007, que “Estabelece diretrizes gerais para a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas e cria o Comitê Gestor”.

Entretanto, identificamos graves riscos gerados por esta medida diante do seu potencial desvio de finalidade, impacto nos modos de vida e cuidado em saúde dos mais de 300 povos indígenas brasileiros e privatização das ações de saúde mental. Há que se ressaltar que a estruturação da Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas ainda está em construção e em debate com os povos indígenas. Nesse sentido, tal proposição não dialoga com o recente documento de consolidação para a Atenção Psicossocial dos Povos Indígenas (Brasil, 2019), elaborado pela própria Sesai, em 2019. Ademais, as organizações indígenas e coletivos de Psicólogos e Psicólogas Indígenas têm se fortalecido nesse debate e deveriam ser envolvidos na elaboração de projetos nessa temática. Consideramos que quaisquer mudanças de diretrizes dessa política deveriam passar por amplo debate, como na própria 6ª. Conferência Nacional de Saúde Indígena, prevista para 2019, e até o momento sem data de realização definida.

a) Consideramos que existe um desvio de finalidade da política de atenção à saúde mental indígenas
A Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas apresenta um conjunto de oito diretrizes, sendo que a proposição de “empreendedorismo indígena” é sugestiva de uma leitura forçada da diretriz “I – apoiar e respeitar a capacidade das diversas etnias e das comunidades indígenas, com seus valores, economias, tecnologias, modos de organização, de expressão e de produção de conhecimento, para identificar problemas, mobilizar recursos e criar alternativas para a construção de soluções para os problemas da comunidade”. Segundo a Organização Mundial de Saúde as ações de saúde mental se referem ao bem-estar mental e psicológico, envolvendo ações de promoção do bem-estar mental, promoção de direitos humanos, prevenção de transtornos mentais e atendimentos às pessoas com sofrimento psíquico[1]. Já a finalidade do empreendedorismo se relaciona às inserções no mercado de trabalho
formal moldadas pelo modelo econômico do capitalismo.

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Segundo o SEBRAE são atividades comuns ao empreendedorismo “a introdução de um novo bem [de consumo], a criação de um método de produção ou comercialização e até a abertura de novos mercados”[2]. Nesse contexto, percebe-se o pressuposto, absolutamente equivocado, de que o sucesso nos negócios (artesanato, agricultura familiar, turismo, pesca, culinária, arte e medicina tradicional) resolva os dilemas de sofrimento psicossocial, fortemente ancorado em situações de desigualdade social, racismo, violação de direitos humanos e colonialidade de saberes. Preconizar a capacitação para o empreendedorismo como estratégia prioritária (ou única) de promoção à saúde mental não somente é equivocado, como também representa uma distorção da política de saúde vigente no país, que prioriza a articulação com as redes de atenção psicossocial no próprio SUS, além de atropelar as atribuições da FUNAI na promoção do desenvolvimento sustentável. Dessa forma, apontamos que é inaceitável que recursos destinados à saúde indígena sejam alocados para projetos de empreendedorismo, ainda mais a partir de metodologia e critérios pré-estabelecidos pelo SEBRAE, cuja experiência se constituiu fora do contexto indígena e não dialoga com o campo da saúde.

A diretriz da Portaria 2.759 ressaltada no Ofício 54/2021 se relaciona com dimensões constantes no artigo 231 da Constituição, com as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena (PNASPI, 2002) e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, entre outros documentos da política indígena, que enfatizam justamente a necessidade de fortalecer as lógicas indígenas de organização social, econômica e cultural, de conhecer as cosmologias, os modos de vida indígena, as dimensões coletivas da subjetividade e seus cuidadores tradicionais. Nada disso está contemplado na ação preconizada no supracitado ofício da SESAI. Há que se ressaltar também que o acesso e manejo de conhecimento tradicional (medicina tradicional, arte e processos produtivos) também passa por regulamentação no país, como a lei 13.123/2015, a partir das indicações da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) demandando diálogo e pactuação com as comunidades indígenas para uma atuação nesse âmbito.

b) Indicação de privatização das ações de saúde mental no âmbito da atenção primária direcionada aos povos indígenas
O SEBRAE, Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, é uma entidade privada sem fins lucrativos que se define como quem atua “com foco no fortalecimento do empreendedorismo e na aceleração do processo de formalização da economia por meio de parcerias com os setores público e privado, programas de capacitação, acesso ao crédito e à inovação, estímulo ao associativismo, feiras e rodadas de negócios.” (SEBRAE, 2021). Esta entidade não detém experiência que a habilite para atuar junto a populações indígenas, e principalmente, em projetos que teriam o intuito de ação em saúde mental. Ressalte-se que o corpo técnico do SEBRAE também não conta com profissionais da área de saúde, em particular de saúde mental. Por outro lado, considerando as questões apontadas, o empreendedorismo não se configura uma ação que passível de financiamento com recursos da Saúde considerando o que a Lei 141/2012 estabelece no artigo 3º como “despesas com ações e serviços públicos de saúde”, os quais não se estendem a atividades de empreendedorismo.

Muito pelo contrário, o que a Política de Saúde Mental, pautada em uma Reforma Psiquiátrica antimanicomial, por intermédio de ações de desinstitucionalização e reinserção social, preconizava, antes da extinção do Ministério do Trabalho e Emprego, pela Lei 13.844 de 2019, era o financiamento de ações de economia solidária em saúde mental. Durante anos, editais lançados pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) beneficiaram grupos no Brasil inteiro, inclusive inseriram projetos de saúde mental de povos indígenas com grande êxito na perspectiva de desmedicalização do sofrimento psíquico. Desde que suas atribuições foram alocadas ao Ministério da Cidadania, houve uma mutilação do conceito de economia solidária e foram interrompidas ações dessa natureza. Os valores da economia solidária, de autogestão, emancipação e forte democracia, tão afeitos a valores do campo da saúde mental, de autonomia, empoderamento e participação social, não se coadunam com valores de expropriação e privatização de saberes, com um empreendedorismo de mercado e predatório, pouco inclusivo e pouco participativo

c) Ausência de consulta e participação dos Povos Indígenas
Um dos principais pilares da PNASPI e da legislação indigenista brasileira, para além do respeito ao modo de vida e organização dos povos indígenas, é o direito de estes serem consultados diante de qualquer proposta que impacte seu território ou modo de vida. A falta de participação dos povos na construção da proposta do projeto está explícita no Ofício 54/2021 quando este afirma que os critérios são estabelecidos pela SESAI, DSEI e SEBRAE.

Ressaltamos que o conjunto de diretrizes da supracitada portaria 2.759/ 2007 assinala a necessidade de amplos debates com os grupos étnicos, diante dos complexos desafios em se formular marcos teóricos e proposições práticas para a área de saúde mental no contexto dos povos indígenas. Os processos de subjetivação dos mais de 300 povos indígenas foram pouco investigados até o momento e, considerando que os marcos nacionais das políticas de saúde mental têm como base perspectivas construídas no contexto sociocultural não indígena, a busca do amplo diálogo tem relação com a
necessidade de minimizar os riscos de etnocentrismo e colonialismo nas ações desenvolvidas nos DSEI. Por isso, as diretrizes portaria 2.759/ 2007 enfatizam a) “um processo de construção coletiva de consensos e de soluções, que envolva a participação de todos os atores sociais relevantes, em especial o movimento social e as lideranças indígenas”; b) “considerar, como atores sociais imprescindíveis para a construção deste processo, os etnólogos e a comunidade acadêmica, na medida em que vêm acompanhando sistematicamente o impacto do contato destas comunidades com as sociedades envolventes”; c) “ considerar como fundamento das propostas de intervenção a estratégia de pesquisa- ação participativa”.

Esse conjunto de características evidencia que as medidas preconizadas pela SESAI carecem de congruência com a política de saúde mental, do SUS e do subsistema de saúde indígena; que são reducionistas, colonialistas e desrespeitosas dos direitos indígenas; que promovem a privatização das ações de saúde e a precarização do trabalho em saúde, e não representam alternativa capazes de prover atenção adequada e resolutiva à saúde mental. A ABRASCO e ABA repudiam mais essa tentativa de enfraquecimento do subsistema de saúde indígena e da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígena (PNASPI).

Rio de Janeiro, 23 de junho de 2021

Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Associação Brasileira de Antropologia

Referências

BRASIL. lei Complementar nº 141, de 13 de janeiro de 2012. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/LCP/Lcp141.htm. Consultado em 18, jun, 2021.
BRASIL/Secretaria Especial de Saúde Indígena. Atenção Psicossocial aos Povos Indígenas. Tecendo Redes
para Promoção do Bem Viver. Brasília, 2019. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf
BRASIL. Lei nº 9.836, de 23 de Setembro de 1999. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9836.htm. Consultado em 18, jun, 2021.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. PORTARIA Nº 2.759, DE 25 DE OUTUBRO DE 2007. Disponível em:
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2007/prt2759_25_10_2007.html. Consultado em 18, jun, 2021.
SEBRAE. Quem Somos. 2021. Disponível em:
https://www.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/canais_adicionais/conheca_quemsomos. Consultado em 18,
jun, 2021.
SESAI. Sobre a SESAI. 2021. Disponível em: https://antigo.saude.gov.br/saude-indigena/sobre-a-sesai.
Consultado em 18, jun, 2021.

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