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Alteração nos preços de medicamentos: confira Nota Técnica da Abrasco

Nota Técnica da Abrasco sobre a  Consulta Pública SEAE nº 02/2021 – Critérios para Precificação de Medicamentos

Os gastos com saúde crescem em quase todo o mundo. Entre eles, os gastos com medicamentos, que de acordo com o IBGE, representam 30% do gasto familiar com saúde e são também uma grande fonte de despesas do SUS (IBGE, 2019). Vale ainda ressaltar que esses gastos incidem proporcinalmente mais sobre as famílias de baixa renda. No âmbito do SUS, as despesas com medicamentos, em termos constantes, cresceram de R$ 9,1 bilhões em 2008 para R$19,8 bilhões em 2019 (INESC 2020). A maioria das análises mostra que dentre as inúmeras causas desse crescimento está a intensificação da dinâmica tecnológica em saúde, especialmente a alta de preços dos medicamentos. Ao mesmo tempo, vivenciamos o desabastecimento de medicamentos e outros produtos essenciais para a saúde antigos e eficazes, porém de menor valor comercial. Tais situações foram agravadas ainda mais pela pandemia da Covid-19.

Os sistemas de saúde há muito desenvolveram mecanismos para a regulação de preços de medicamentos, tendo em vista a preocupação com o chamado “preço excessivo” dos medicamentos (OCDE, 2018). Com o recrudescimento da tendência de alta, os modelos regulatórios estão sendo aperfeiçoados, com a utilização de avaliação de tecnologias em saúde e outros mecanismos, como na Alemanha, Canadá, França, Reino Unido, entre outros. Em todos esses países o controle de preços de medicamentos está vinculado a uma razão sanitária, de não permitir que o aumento desproporcional dos preços implique na diminuição do acesso aos mesmos. Em nenhum deles as regras de precificação estão vinculadas ao aumento das receitas e das margens de lucro das empresas farmacêuticas.

Os altos preços dos medicamentos são um desafio para os países, independente do seu nível de ingresso, tal como mostram vários documentos – United Nations Secretary General’s High-Level Panel on Access to Medicines (2016), Council of the European Union (2016), Wirtz et al (2017), Vogler et. al. (2018), entre outros.  Importantes movimentos que têm se expandido pelos países, capitaneados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), tais como os “Fóruns de Preços Justo de Medicamentos” (WHO, 2021), a Resolução da transparência dos mercados para medicamentos, vacinas e produtos para saúde (WHO, 2019), bem como as Diretrizes de Políticas de Precificação de Medicamentos (WHO, 2020).  A OMS recomenda a regulação de preços de medicamentos com o objetivo de garantir o acesso equitativo aos medicamentos pelos usuários e sistemas de saúde (WHO, 2020). Considera-se fundamental também que seja garantido o estímulo à inovação, ao mesmo tempo em que se garantam preços justos para os medicamentos e outras tecnologias. Há clareza da necessidade de que a política de preço de produtos farmacêuticos deve ser baseada em modelos que tenham como base os princípios de equidade, justiça, prestação de contas e transparência de preços de medicamentos e custos de P&D (WHO, 2021).

As experiências e recomendações internacionais relacionadas à política de preço de produtos farmacêuticos precisa ser levada em consideração no momento de o Brasil repensar sua forma de lidar com a precificação dos medicamentos, na Consulta Pública, aberta pela SEAE do Ministério da Economia sobre minuta de alteração da Resolução CMED no 02, de 5 de março de 2004.

Temos três importantes preocupações. Primeiro, que o estímulo à inovação contribua para o desenvolvimento de medicamentos e tecnologias que tragam efetivamente benefícios clínicos significativos para os pacientes sem acarretar aumento dos preços. Segundo, que seja garantido o acesso equitativo aos medicamentos e outras tecnologias pela população e a terceira, a garantia da sustentabilidade dos sistemas de saúde, uma vez que os medicamentos significam uma parcela importante dos gastos governamentais com saúde, especialmente em sistemas universais, como o brasileiro (Bermudez et l, 2020; Vogler, 2019).

Um argumento abundantemente utilizado contra a regulação de preços de medicamentos é que as empresas sofrem com ela. No Brasil, pelo contrário. Neste século, com as políticas de regulação existentes a partir da CPI dos medicamentos (1999) a indústria farmacêutica esteve entre os segmentos que mais cresceram, resistindo ao desastre observado em outros segmentos a partir de 2014. De 2015 a 2019, houve um aumento de 9.8% no número de empresas e de 33.3% no faturamento do setor farmacêutico brasileiro (Brasil. Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Secretaria Executiva., 2021). Por outro lado, os mecanismos que estimulam a inovação passam ao largo do afrouxamento de preços de medicamentos, estando localizados numa menor aversão ao risco por parte das empresas, o que implica em mudança cultural bem como no fortalecimento de políticas de fomento tecnológico operadas pelo BNDES e pela FINEP.

A política de regulação econômica de medicamentos no Brasil, com mais de 20 anos de existência, surgiu como uma das recomendações da CPI de Medicamentos no contexto da Política Nacional de Medicamento e fortalecimento do papel do estado regulador, juntamente com a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Seu desenho interministerial, considera o caráter intersetorial da regulação econômica de medicamentos por meio da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED) (Brasil., 2003). Neste sentido, a necessidade do estabelecimento de um corpo técnico especializado para a avaliação de tecnologias em saúde, de forma a identificar o benefício clínico adicional, princípio que norteia a precificação dos medicamentos, fez com que a Anvisa fosse designada a Secretaria Executiva da CMED. Desta forma, a SCMED apoia e subsidia tecnicamente os processos de tomada de decisão, bem como implementa as decisões e conduz o trabalho quotidiano da autorização de preços e do monitoramento do mercado (Brasil. Presidência da República, 2003). Assim, seguem-se os preceitos internacionais das boas práticas na regulação econômica dos produtos farmacêuticos, primordialmente no âmbito da saúde, com a participação dos demais setores. O modelo regulatório segue as boas práticas e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e não pode prescindir da condução pelo Ministério da Saúde, com o apoio técnico da Secretaria Executiva na Anvisa.

Entre nós, lamentavelmente, está sendo construída uma proposta que fragiliza a regulação de preços de medicamentos e que terá certamente um impacto para as famílias, governo e saúde suplementar. Acaba de ser formalizada a “Consulta Pública SEAE nº 02/2021 – Critérios para Precificação de Medicamentos” oriunda do Ministério da Economia, que carece de uma fundamentação técnica de análise de impacto regulatório e deixa inúmeras brechas para aumentos de preço.

É, sem dúvida, positivo estimular a capacidade inovativa da indústria farmacêutica brasileira, intenção aparente do texto apresentado, bem como incorporar jurisprudências já consolidadas. Dentre as alterações propostas pela consulta pública está a de bonificar medicamentos que apresentem “inovações incrementais” acima dos preços já praticados no mercado. Entretanto, o conceito mais disseminado de inovação incremental, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), apresenta grandes indeterminação e elasticidade de suas fronteiras. Podem ser focadas em produtos, processos, marketing, design, mudanças organizacionais etc. Os critérios estabelecidos para a bonificação na consulta pública são vagos e abrem portas para “inovações” supérfluas, sem quaisquer impactos sanitários para os usuários.

Ao mesmo tempo, circula na imprensa projeto que enfraquece a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), transferindo da ANVISA para o Ministério da Economia a sua Secretaria Executiva (SCMED). Na economia brasileira, preços são, de modo geral, controlados pelo mercado. Dentre as exceções, para corrigir falhas de mercado e por razões sanitárias e de proteção da economia popular e do SUS, está o controle de preços de medicamentos. Portanto, não há qualquer razão para que a Secretaria Executiva saia da esfera de competência da saúde (ANVISA), onde desenvolve um trabalho técnico altamente especializado, interagindo com outros órgãos e sistemas da Agência para o Ministério da Economia.

O sucesso da regulação sanitária e econômica no Brasil deve-se ao seu caráter intersetorial e de políticas de Estado, com os diferentes ministérios atuando dentro de sua esfera de competência. O grande prejuízo da implementação dessa proposta é o esvaziamento da ANVISA, com o deslocamento de um tema da ordem sanitária para a órbita econômica. É fundamental recuperar a capacidade técnica da SCMED para que continue desempenhando seu papel de suporte técnico à CMED. A regulação deve garantir um equilíbrio entre o estímulo à inovação, competitividade e a garantia do acesso e da sustentabilidade do SUS. Quando um destes pilares é retirado, quem sofre é a população. Esse é mais um desastre à vista que pode ser evitado.

De acordo com Hoefler e colaboradores (2019) trinta e três (14%) dos 236 medicamentos avaliados pela SCMED foram considerados como terapias inovadoras. No Brasil, não há justificativa para que o setor público ou o paciente paguem mais por algo que não tenha vantagem terapêutica e, portanto, não trará benefício clínico. Esta é uma conquista da população brasileira e deve ser aprimorada e não flexibilizada, a bem da população e do Sistema Único de Saúde.

Neste sentido, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva -ABRASCO, vem por meio desta, encaminhar suas contribuições para a “Consulta Pública SEAE nº 02/2021 – Critérios para Precificação de Medicamentos” oriunda do Ministério da Economia.

Além das contribuições específicas, a ABRASCO pontua questões necessárias ao aperfeiçoamento do marco regulatório no país:

Em relação ao arranjo institucional e transparência:

  • Recuperar e fortalecer a capacidade técnica da SCMED para que continue a desempenhar o seu papel, mantendo sua localização na Anvisa, que é a agência reguladora da saúde, que realiza avaliação de tecnologias em saúde como parte da precificação de medicamentos. A ida da SCMED para o Ministério da Economia, desestabilizaria o atual modelo regulatório, priorizando os aspectos econômicos e os interesses da indústria farmacêutica na regulação dos preços de produtos farmacêuticos;
  • Ampliar, de acordo com o Projeto de Lei n° 5591, de 18 de dezembro de 2020, a participação da sociedade civil na composição da CMED, incluindo representantes representante do segmento de usuários ou de trabalhadores do Conselho Nacional de Saúde, um representante do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, proveniente da sociedade civil organizada das demais esferas de governo um representante do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS), – um representante do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS). Solicitamos, também, a inclusão de um representante de entidades da Saúde Coletiva, como ABRASCO, ABRES e CEBES etc.
  •  Respeitar as Boas Práticas Regulatórias, tendo em vista que o tema pode resultar em impactos de monta para os sistemas de saúde e para a população brasileira. Isto implica em disponibilizar de forma transparente os subsídios técnicos para as proposições de mudança, bem como aqueles utilizados para as análises dos impactos previstos na norma, assim como dos pareceres técnicos elaborados pela CEMED. Inclui, igualmente, disponibilizar a Análise do Impacto Regulatório e discutir amplamente, por meio de audiências públicas, os aspectos da necessária melhoria da política de precificação de medicamentos com todos os atores sociais: sociedade civil, conselhos de saúde, organizações da Saúde Coletiva, instituições de defesa do consumidor, usuários, gestores e empresas farmacêuticas.
  • Tornar clara a metodologia a ser utilizada na atribuição do valor terapêutico dos medicamentos, que deve ser critério basilar para a precificação.

Em relação à atualização do marco regulatório:

  • A atualização do modelo regulatório deve considerar, como recomenda a OMS e os órgãos de controle – tais como o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União-, a revisão dos preços autorizados ao longo do ciclo de vida do medicamento. A redução do preço do medicamento poderá evitar as grandes diferenças entre os preços máximos e os preços praticados, de forma a garantir o preço justo do medicamento e corrigir distorções de preços para a população e para o setor público. A possibilidade de ajuste do preço para os medicamentos essenciais de baixo valor comercial pode evitar o desabastecimento por falta de interesse da indústria;
  • Considerando que, com maior frequência, os medicamentos têm entrado no mercado com evidências menos robustas de eficácia e segurança, bem como preços elevados, propõe-se a ampliação dos critérios e o período de provisoriedade de preços para pelo menos três anos. Torna-se, cada vez mais importante, avaliar as novas evidências geradas em estudos clínicos adicionais e na pós-comercialização do medicamento, bem como o preço nos demais países de referência.
  • A revisão de preços deve ser realizada de dois em dois anos e a cada alteração pós-registro relacionadas à indicação terapêutica e mudanças no mercado. Deve levar em conta outros critérios, além dos existentes atualmente, tais como a expiração da patente, o aumento da população-alvo, a entrada de novas opções terapêuticas no mercado, a entrada de genéricos/biossimilares, a força da evidência e o valor terapêutico e a variação de preços nos países de referência.
  • Ampliar a cesta de países, incluindo outros países da América Latina ou de outras regiões, que possuam nível de ingresso semelhantes ao do Brasil, política de regulação de preços e sistema de revisão de preço; 
  • Adotar mecanismos que garantam a manutenção no mercado de medicamentos essenciais e os necessários para populações específicas, tais como formulações pediátricas e de baixo valor comercial, evitando o desabastecimento;
  • Fortalecer a Avaliação de Tecnologias em Saúde com a adoção de uma escala de valor ou benefício terapêutico adicional, comum aos medicamentos novos e de inovação incremental e garantir que o preço resultante não seja superior aos praticados nos países da cesta ou do tratamento utilizado como comparador. Países como Canadá, França, Japão e Alemanha possuem metodologia para avaliação do valor terapêutico do medicamento e há, também, a metodologia independente da The International Society of Drug Bulletins (ISDB), utilizada pelos boletins da PRESCRIRE.
  • Adotar preço teto único, de acordo com o menor preço de produtos com o mesmo princípio ativo nos países de referência, uma vez expirada a patente, para medicamentos com os mesmos princípios ativos, independentemente de ser medicamento de referência, genérico e similar e independente do grupo econômico;
  • Corrigir distorções existentes em relação aos preços dos medicamentos biológicos não novos;
  • Ampliar a transparência em relação aos custos e preços no setor farmacêutico, incluindo investimentos públicos e descontos em acordos de confidencialidade. Deve-se, também, garantir maior transparência sobre os critérios de tomada de decisão para a precificação com a publicação dos parâmetros de definição de preços máximos e dos pareceres da CMED, assim como são publicados os pareceres de aprovação de registro da GGMED;
  • Incorporar na normativa o estabelecimento do Coeficiente de Adequação de Preço (CAP) e o Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG);

Tendo em vista o marco legal vigente (tais como o artigo 6º da Lei 13.848/2019 e o Art 5º do Capítulo IV da Lei 13.874/2019) que determina que as propostas de alteração de atos normativos de interesse geral dos agentes econômicos, consumidores ou usuários, deverão ser precedidas da realização de Análise de Impacto Regulatório (AIR), bem como os Guias de AIR da Casa Civil, Ministério da Economia e da Anvisa, solicita-se que seja dada publicidade aos estudos que subsidiaram as propostas de alteração da Resolução 02/2004 em tela.

Tendo em vista que esta consulta acarretará possíveis alterações distintas das inicialmente previstas, solicita-se que ela seja interrompida para sejam realizados os estudos de análise de impacto regulatório (AIR), com o envolvimento dos atores afetados, de forma a garantir que os objetivos da regulação econômica sejam mantidos e não haja risco de aumento de preços e prejuízos para o acesso aos medicamentos pela população brasileira tendo em conta as possíveis etapas:

  1. Consolidação do marco regulatório vigente com incorporação da jurisprudência constante em comunicados e entendimentos
  2. Realização de estudos de impacto regulatório e respectivas consultas de pontos específicos a serem modificados, de forma individual.
  3.  Consolidação das alterações realizadas com a respectiva consulta pública.
  4. Realização de audiências públicas e uso de instrumentos regulatórios não normativos para fortalecer a participação e o controle social.

Clique para baixar o documento na íntegra e conferir as Referências Bibliográficas.

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