O risco de reaparecimento de casos de poliomielite em mais de 300 municípios brasileiros, devido à baixa cobertura vacinal, tem sido atribuído em grande parte à população. Acomodados com a erradicação no país da doença grave, que pode matar ou deixar como sequela danos permanentes em um dos membros inferiores – daí ser conhecida como paralisia infantil – muitos pais estariam deixando de vacinar seus filhos apesar de a vacina estar sempre disponível nos postos de saúde.
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No entanto, não é bem assim. Embora o imunizante não esteja em falta, existe um conjunto de fatores que contribui para a queda vertiginosa da cobertura vacinal até mesmo em municípios de São Paulo, o estado mais rico da federação, em que há nove municípios com cobertura inferior a 10%, quando a Organização Mundial preconiza 95%, para dificultar a circulação do poliovírus.
A demora no atendimento nos serviços sobrecarregados, com falta de pessoal, pode levar horas. E a carência de insumos e mesmo de uma ou outra vacina do calendário, o que geralmente obriga um retorno ao posto em outra data – situação complicada para mães ou pais que trabalham –, é um fator que desencoraja. É por isso que o dirigente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor titular do Departamento de Medicina Social da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Luiz Augusto Facchini, entende se tratar, na verdade, de mais um efeito previsível das políticas de austeridade implementadas pelo governo de Michel Temer (MDB) a partir do golpe de estado, em 2016.
“É razoável argumentar que eventos decorrentes do golpe, em termos de ação política, econômica e social, tragam a preocupação que temos hoje em termos de saúde pública”, afirma o especialista. Conforme destaca, não é coincidência que desde aquele ano cai o número de crianças com mais de 1 ano vacinadas contra a pólio. Sem contar o sarampo e outras doenças, que começam a ressurgir. Embora ainda não haja registro de poliomielite no país desde sua erradicação, há 30 anos, ontem (5), foi confirmada a morte de um bebê de 7 meses, no Amazonas, que não havia sido vacinado contra o sarampo. É a terceira morte no país devido à doença. As duas outras vítimas eram de Roraima.
Entre as evidências, Facchini aponta mudanças na legislação com impacto direto e indireto nos determinantes sociais da saúde e na desorganização da estrutura do atendimento à população, que afetam também o Programa Nacional de Imunizações (PNI) – que se tornou referência mundial em política de estado voltado à saúde na década de 1980.
“A aprovação da Emenda à Constituição (EC) 95, que impõe o congelamento dos investimentos federais na área social por 20 anos, a redução de investimento e em programas como o Mais Médicos, as mudanças na lei trabalhista, o crescente desemprego, o fim de programas sociais, a volta da pobreza extrema, o risco da volta da fome. Havia um conjunto de políticas relacionadas ao Sistema Único de Saúde, de estruturas, de pessoal experiente. E de repente, com as mudanças, tudo fica tudo mais complicado”, avalia. “De repente, tem até o dinheiro, mas a compra não foi feita. E e se foi, pode não ter sido entregue nas unidades de saúde. São problemas múltiplos, complexos, desestruturantes, que resultam no quadro”.
Ajustes nos municípios – Políticas semelhantes em âmbito municipal, implementadas por gestores descompromissados com a população, sobretudo a mais pobre, também piora o quadro. É o caso de prefeitos que, para fazer caixa, preferem desativar unidades de saúde – como tem sido em São Paulo, por exemplo.
“Quando prefeitos deixam de investir na saúde, ao contrário do que preconizam marcos internacionais, as consequências aparecem, como na cobertura vacinal. São sinais que mostram que a austeridade fiscal, de restrição de políticas sociais, não vai mostrar a sua face perversa daqui a 20 anos, mas de imediato”.
No entanto, o enfraquecimento do atendimento vai além do viés político, conforme ressalva a assessoria técnica do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). O município, ente que menos arrecada, é o que mais aplica em saúde, ao contrário da União e dos estados. Uma equação que também explica a desestruturação dos serviços e a redução da cobertura vacinal, que deve se acentuar com a EC 95. É por isso que no âmbito do conselho há a certeza de que ou se derruba a Emenda, ou cai a Constituição.
Na opinião de Facchini só há uma receita para enfrentar o problema: respeitar e cumprir toda a legislação do SUS e investir em políticas sociais. Conforme avalia, a atenção básica é o ponto crítico. “Temos de investir para universalizar a Estratégia de Saúde da Família, que hoje tem cobertura de 65%. Temos de ir rapidamente a 75%, 85%. Além disso, priorizar os processos para o funcionamento do SUS e de suas atribuições essenciais, como a vacinação, o que requer recursos suficientes para compra de vacinas, o seu recebimento, a distribuição, a aplicação nas crianças, bem como esforços de mobilização da comunidade para isso”, diz.
Os méritos do SUS, que entre outras conquistas foi responsável por erradicar diversas doenças no país em apenas 30 anos de existência, não podem ser desperdiçados, acredita ele. “Onde o SUS é fraco, os problemas são mais graves.”
Por isso Facchini defende mais investimentos. Segundo estimativas, o orçamento do Ministério da Saúde para as ações de atenção básica é da ordem de R$ 20 bilhões por ano, quando deveria ser, no mínimo, o dobro. “É pouco dinheiro para tamanha responsabilidade com 200 milhões de pessoas; um per capita anual ao redor de R$ 24. Aumentar a cobertura vacinal depende de um pacto nacional urgente, com a retomada imediata de campanhas e na sequência apoiar a organização da rede de saúde para que o SUS mantenha esses patamares elevados.”
No último dia 2, a procuradora federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat encaminhou ofício ao Ministério da Saúde. Ela quer informações sobre as cidades em situação mais difícil, as causas já identificadas para a baixa cobertura e, principalmente, as ações previstas na política nacional de imunização para solucionar o problema.