Ana Lucia Pontes, coordenadora do GT Saúde Indígena da Abrasco, concedeu entrevista ao portal da Escola Politécnica Joaquim Vênancio/Fiocruz sobre a atual conjuntura da Saúde Indígena. Clique para acessar a publicação original ou leia abaixo na íntegra:
EPSJV/Fiocruz: Em reunião realizada na última sexta-feira (12) os conselheiros nacionais de saúde votaram por manter a data da 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena entre os dias 27 e 31 de maio, a despeito de um parecer assinado no dia anterior pela Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde questionando alguns pontos do processo contratação da empresa para a realização da etapa nacional da Conferência, iniciado em setembro do ano passado, e recomendando que o trâmite fosse recomeçado do zero, o que inviabilizaria sua realização na data prevista. Há risco de que a Conferência não aconteça?
Ana Lúcia Pontes: As conferências de Saúde Indígena já têm enfrentado, ao longo dos anos, o problema de não conseguir manter a periodicidade desejada e recomendada. É só observar: a primeira aconteceu em 1986, a segunda em 93, a terceira em 2001, a quarta em 2006 e, finalmente, a quinta em 2013. Por esse histórico a gente tem tido ao longo dos anos um desafio de realizar essa mobilização na regularidade desejada. No ano passado, se começou a pressionar para acontecer a 6ª CNSI, e houve uma mobilização grande do Fórum de Presidentes de Condisi [Conselho Distrital de Saúde Indígena], junto com a Comissão Intersetorial de Saúde Indígena, negociando com o Conselho Nacional sobre a importância de realizar, porque já se passaram seis anos da 5ª Conferência. Todas as conferências locais e distritais foram realizadas no segundo semestre do ano passado. Em algumas regiões, como na Amazônia, há uma dificuldade logística. Foi todo um esforço.
Havia questionamentos da Conjur em relação à etapa nacional, mas que estavam sendo respondidos, buscando atender às exigências colocadas. Então, apesar desse contexto difícil, a gente conseguiu realizar todas as 302 conferências locais até dezembro do ano passado, e foram realizadas as 34 distritais, de modo que tudo estava encaminhado para a etapa nacional. A realização da conferência estava sendo feita nesse esforço conjunto grande, se sabia que tinha esse questionamento, mas que estava sendo respondido.
EPSJV/Fiocruz: Não há nada definido?
Ana Lúcia Pontes: A gente não tem uma resposta definitiva. A solicitação de que fosse iniciado todo o processo [de contratação] novamente saiu no dia 10, o que impossibilitaria a realização em maio.
EPSJV/Fiocruz: O Portal EPSJV teve acesso a um documento em que a Sesai questiona o parecer da Conjur do Ministério da Saúde, que apontou irregularidades no processo de organização da etapa nacional da Conferência. Nele, a Secretaria pontua que já estava em diálogo com a Consultoria para fazer as modificações necessárias e se diz surpreendida com o pedido de que o processo seja iniciado do zero, o que inviabilizaria a realização da conferência na data prevista. Que avaliação faz de todo esse processo?
Ana Lúcia Pontes: O que me parece, pelo que eu ouvi da comissão organizadora, é que se tentou responder a todas as demandas. O orçamento, por exemplo, foi reduzido de R$ 12 para R$ 8 milhões. Várias questões colocadas pela Conjur estavam sendo respondidas. Para mim, a preocupação é garantir que se ache a via para a realização da Conferência. Nesse momento não existe garantia nenhuma de que ela vai ocorrer.
Ao mesmo tempo temos um cenário mais amplo que deve-se levar em consideração. Um deles é o próprio decreto [9.759] que extingue instâncias de participação social [entre elas o Conselho Nacional de Política Indigenista e a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena]. O próprio pronunciamento do presidente [Jair Bolsonaro] no Facebook falando do encontro de indígenas em Brasília, muito provavelmente referindo-se ao Acampamento Terra Livre. Nos perguntamos como esse cenário influencia especificamente a 6ª Conferência Nacional de Saúde Indígena.
Qualquer questão de má execução de recurso público tem que ser investigada, não tenho dúvida. Se há evidências de corrupção, indicação errada ou uso inadequado do recurso público na execução do evento, tem que investigar. Agora você inviabilizar a execução da conferência é penalizar os indígenas. Me parece que estamos falando de outras coisas. Estamos falando de que lugar se quer ou não dar para a causa indígena. E de que lugar se quer dar para a participação social.
EPSJV/Fiocruz: E que análise faz da decisão unânime do CNS – que reúne também membros do governo federal – de manter a data?
Ana Lúcia Pontes: Eu tendo a achar que devemos batalhar por manter a data. O cenário é muito desfavorável para qualquer questão relacionada aos povos indígenas. E isso é para além da Conferência. Não é por acaso que houve um questionamento inicial até do ministro da saúde [Luiz Henrique Mandetta], de rever o organograma da pasta e extinguir a Secretaria Especial de Saúde Indígena. Há todo um questionamento da existência de uma política diferenciada para os povos indígenas.
Outra preocupação é que essa Conferência está pronta. Se você considerar que todas as etapas locais e distritais já aconteceram, que as propostas já estão encaminhas para discussão. Houve um processo que também demandou dinheiro público. Tudo isso vai ser desperdiçado?
Para além disso, a primeira medida provisória [870] do governo Bolsonaro, no dia 2 de janeiro, afeta diretamente a principal pauta indígena, que é a demarcação de terras. E a principal instituição indigenista, que é a Funai [Fundação Nacional do Índio]. O órgão sai do Ministério da Justiça e passou para o Ministério da Mulher, Direitos Humanos e Família [encabeçado pela ministra Damares Alves], enquanto a demarcação de terras foi da Justiça para o Ministério do Meio Ambiente. Com isso, fica claro que a população indígena, neste momento, está tendo seus direitos constitucionais sistematicamente atacados. Tudo que se refere a essa pauta parece estar de alguma forma sendo questionado. O subsistema de saúde indígena foi questionado, a Sesai foi questionada, o orçamento da Funai foi reduzido em 90%. As conquistas históricas dos povos indígenas estão sendo ameaçadas. Há uma tendência de apagar a questão da especificidade dos povos indígenas, das lutas por direitos que eles têm travado. A Conferência entra nesse cenário.
EPSJV/Fiocruz: E diante desse contexto de questionamentos sobre a relevância de se ter uma política de saúde especificamente para os índios gostaria que você falasse sobre a importância das conferências para o debate da saúde indígena.
Ana Lúcia Pontes: Poucas pessoas sabem, mas a discussão da construção de um subsistema e de uma estrutura específica para atender as necessidades dos povos indígenas dentro do Sistema Único de Saúde surge no momento da emergência da construção das bases do SUS, na 8ª Conferência em 1986, quando nesse mesmo ano se realizou a 1ª Conferência de Proteção à Saúde do Índio. O debate da Reforma Sanitária vai ocorrendo e dialoga com o debate da construção de uma política de saúde indígena desde o princípio. Desde aquele momento, se tinha uma avaliação – e os indicadores atuais continuam mostrando isso – de que a população indígena tem vulnerabilidades específicas, com uma importante desigualdade em saúde. Na Constituinte há o reconhecimento de que esses povos não vão se extinguir, nem vão e nem devem ser ‘integrados’ à ‘sociedade’. Ao contrário, temos o fortalecimento da autodeterminação desses povos e dos seus direitos socioculturais e territoriais. Saúde para eles tem outras composições e significados, tem outros especialistas, tem outros determinantes; tudo isso justifica um subsistema dentro do SUS.
As conferências de saúde indígena sempre foram fundamentais nesse processo. São momentos importantes de avaliação e retomada de princípios. Pela questão geográfica e logística, os distritos sanitários indígenas são realidades muito distintas, então esses momentos de grandes encontros e debates aproximam essas regiões e essas realidades. São momentos muito propícios para equacionar questões. Temos que continuar aprimorando o subsistema. E se nem todas as respostas para isso saem da Conferência, ela é a instância na qual os maiores interessados, que são os indígenas, os usuários, respondem como eles querem que o futuro desse subsistema caminhe. É um processo que está muito apropriado pelos indígenas. Até o fato de as conferências locais e regionais terem sido realizadas tão rápido mostra o quanto eles valorizam e estão envolvidos com esse processo.
EPSJV/Fiocruz: Mesmo antes de o atual governo assumir, se desenrolou uma crise que teve impacto direto nas populações mais vulneráveis que foi o fim da participação de Cuba no programa Mais Médicos. Que impacto isso teve para a saúde indígena?
Ana Lúcia Pontes: Este é um tema bem delicado para a saúde indígena. Historicamente, a interiorização de médicos é um nó crítico do SUS. Isso no subsistema era muito grave. Em 2013, início do Mais Médicos, havia no máximo cento e poucos médicos atendendo nos distritos, e o tempo de permanência era muito curto, havia muita rotatividade. Com o Mais Médicos se conseguiu cerca de 360 médicos atuando em áreas indígenas e, com isso, atingimos uma relação população-médico próxima do que é o parâmetro da Organização Mundial da Saúde. Finalmente, se conseguiu estruturar o trabalho das equipes multidisciplinares de saúde indígena, fortalecer os fluxos, dar respostas até para os problemas novos que estão emergindo. Mas com a saída dos médicos cubanos, não se conseguiu repor e fixar os médicos na chamada pública que aconteceu em dezembro. O governo diz que houve o preenchimento total das vagas agora em fevereiro, mas nossa preocupação é e se esses médicos vão permanecer. E os profissionais médicos são fundamentais na construção da integralidade da atenção.
EPSJV/Fiocruz: E que avaliação faz dos cem dias de governo Bolsonaro para a saúde indígena?
Ana Lúcia Pontes: É um cenário preocupante. A gente vê o questionamento das bases da política indigenista, seja nas concepções ou nas propostas, como numa retomada do discurso da integração do índio na sociedade nacional. Se fala no índio como se houvesse uma identidade genérica, sendo que se construiu nos últimos anos o valor da diversidade e do respeito às diferenças étnico-culturais. Há um retrocesso claro nesse sentido. Há uma falta de entendimento da questão indígena, uma falta de conhecimento em relação ao histórico do debate dessa temática e um desrespeito pelas conquistas alcançadas. E, por consequência, há claramente ações de desmonte. Nos últimos dois anos, houve aumento de assassinatos de lideranças indígenas e do campo. A perspectiva é piorar.
Mas a gente viu que o movimento indígena é um dos movimentos sociais mais potentes do Brasil. Foi o movimento social que mais se manifestou e tem pressionado nas discussões contra essas medidas do governo. O movimento indígena não está parado, e isso tem que se destacar.
EPSJV/Fiocruz: A pressão do movimento indígena foi central para que o Ministério voltasse atrás na proposta de extinguir a Sesai e municipalizar as ações de saúde indígena. Como está essa questão hoje e que impactos uma medida como essa poderia ter?
Ana Lúcia Pontes: O Secretário [Especial de Saúde Indígena] falou na última audiência pública do Senado que a municipalização está descartada e que a Sesai está garantida no novo organograma do Ministério da Saúde. Vamos acompanhar essa portaria essa portaria do novo organograma. O que nos preocupava foi esse questionamento de que o subsistema era um SUS paralelo. Não é paralelo, ele é SUS. Foi criado como um subsistema integrado ao SUS, institucionalizado na própria Lei Orgânica do SUS. O subsistema executa ações dentro dos territórios indígenas e articula a continuidade do cuidado no restante da rede do SUS. Então não tem paralelismo, tem que fortalecer essas articulações.
Já o problema da municipalização se liga a uma questão maior, que é a luta pela terra. As disputas ocorrem no nível local, levando frequentemente a conflitos de interesse. Então os povos indígenas vêm historicamente, questionando a municipalização da saúde indígena.
Quase 80% da população indígena vive em municípios de pequeno porte, com menos de 50 mil habitantes que têm pouca estrutura da rede de atenção primária. Esses municípios não dariam conta da logística necessária e dos custos necessários para atender as comunidades indígenas que, em muitas áreas, exigem transportes e alojamento de profissionais em períodos prolongados.
(com edição de Maíra Mathias)