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Artigo: A conta, por favor – Por Ligia Bahia

Vilma Reis

Ligia Bahia assina o artigo ‘A conta, por favor’ que o jornal publicou neste sábado, 3 de novembro. A pesquisadora, membro da Comisssão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, evidencia os rumos do Sistema Único de Saúde após a eleição para presidente do Brasil: – “A obrigação de técnicos e pesquisadores é detectar perspectivas realistas em rasgos proféticos, evitar a desordem proposital dos enunciados incoerentes. A saúde precisa de orientações claras, em vez de convenções reiterativas e inviáveis”. Confira:

A opção da maioria dos eleitores brasileiros por Bolsonaro não foi direcionada por suas propostas ou críticas a políticas de saúde. A disputa passou longe das polêmicas tradicionais, como mais público ou privado, e também de tabus como aborto. Mas ficou subentendido que a vida dos brasileiros irá melhorar, e a saúde receberá seu quinhão de benfeitorias. O novo presidente se comprometeu apenas com medidas relativas à inserção no mercado de trabalho de determinados profissionais de saúde, especialmente médicos. As principais proposições são o credenciamento universal e a carreira de Estado para médicos. Ambas — embora distintas em termos de compatibilidade com o sistema de saúde no Brasil — são controversas e não explicitam rumos para o SUS.

Instituir uma regra para permitir que 453 mil médicos atendam pacientes do SUS e de planos implicaria mudanças estruturais na organização da saúde pública e regulação do mercado. Supondo que essa etapa fosse ultrapassada, o cálculo de despesas é simples, bastaria multiplicar a população pelo número de consultas por habitante e valor de remuneração de cada atendimento. Para quatro visitas a médicos por ano — parâmetro inferior ao da França, 6; ou Canadá, 7,7 — seria necessário gastar R$ 83,5 bilhões, cerca de 65% do total do orçamento previsto para o Ministério da Saúde para 2019. Haveria maior acesso para quem mora em cidades que concentram recursos assistenciais e aproximadamente R$ 15 mil por mês para cada médico — sem considerar impostos. A soma pode ser alterada mediante redução das variáveis. Mas a diminuição do número e do preço das consultas teria efeitos negativos sobre a adesão dos médicos.

As dificuldades institucionais e recursos requeridos para estabelecer carreira de Estado para médicos e outros profissionais da área são infinitamente menores. A contratação de 20 mil médicos ao longo de quatro anos de governo — cinco mil em cada ano, com salário inicial líquido de R$ 15 mil — é compatível com as prioridades de interiorização do SUS. Alocar cerca de R$ 2 bilhões por ano — considerando médicos e enfermeiros — para organizar equipes de atenção primária é exequível, desde que acompanhado de investimentos para manter a conexão desses profissionais com instituições de ensino e pesquisa. A ideia não é nova, foi apresentada por sanitaristas e entidades médicas como solução para atrair recém-formados para municípios distantes e alternativa ao Programa Mais Médicos. Os vetos políticos à carreira de Estado foram emitidos por setores que propõem a redução do Estado e despesas públicas. A interdição permanece, e agora tornou-se mais intensa. A carreira de Estado teria que superar a barreira “menos Brasília.”

Os que acompanham a trajetória das promessas eleitorais sabem que muitas são abandonadas. A obrigação de técnicos e pesquisadores é detectar perspectivas realistas em rasgos proféticos, evitar a desordem proposital dos enunciados incoerentes. A saúde precisa de orientações claras, em vez de convenções reiterativas e inviáveis. Pessoas continuam morrendo porque não conseguiram vagas em hospitais, apesar de seus familiares colecionarem mandatos judiciais. Professores eméritos da UFRJ pagam pela mensalidade de seu planos, que requerem coparticipação, R$ 10.339,12. Estamos produzindo um acervo de dossiês tenebrosos: inúmeros laudos médicos e ações dos tribunais, cuja última página é o atestado de óbito, e relatos de idosos cujos salários são menores do que o valor do plano. Reais problemas de saúde não constam no documento apresentado para a campanha.

A indefinição sobre o SUS é permeável à cobrança da devolução integral dos variados empenhos na campanha. Lobbies empresariais querem se apropriar de leitos públicos, reduzir coberturas e aumentar preços. Entidades médicas e eleitores dispersos esperam a expansão da oferta pública universal. Terminou uma eleição, na qual defensores de políticas de saúde opostas votaram no mesmo candidato. Sem programa de governo para a saúde, o jogo tende a ser antidemocrático; quem detém maior poder econômico elimina a maioria que assegurou a vitória.

 

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