'De cara limpa' – A coerência entre as palavras e os atos governamentais na Saúde passará por um teste de fogo
A decisão do governo de “apertar” a regulação sobre planos e seguros de saúde é um passo decisivo para resolver o racionamento do atendimento. A determinação enunciada pela presidente Dilma de impor respeito ao direito dos consumidores, certamente repercutirá na área que é, ao lado das empresas de telefonia, campeã de denúncias e queixas. O segundo movimento para que seja atendida a vontade de sanear sérios e reiterados problemas de restrição assistencial e elevação indevida de valores cobrados, por incrível que pareça, é trivial, pois consiste em preencher as exigências da legislação aprovada e não implementada. Desde 1998, as normas que regulamentaram o funcionamento da assistência suplementar vêm sendo substituídas por dispositivos infralegais que distorcem a regulação aprovada para um país que tem um sistema universal de saúde.
Segundo a Lei 9656, os planos de saúde são responsáveis pelas ações e cuidados de saúde necessários à atenção a todo e qualquer agravo; a negação do acesso e a utilização de procedimentos é vedada; o ressarcimento ao SUS incide sobre atendimentos de urgência, emergência, ambulatoriais e hospitalares; e o reajuste de preços, especialmente para idosos, é controlado. Mas a opinião de muitos empresários e alguns burocratas influentes é que a regulamentação exagerou a proteção aos pacientes. Evitando expor conflitos abertamente, os lobbies empresariais optaram por se apropriar de espaços institucionais estratégicos. Pouco a pouco, as contradições entre os preceitos legais e as práticas regulatórias se tornaram tão corriqueiras que a postura de desobediência radical à legislação se revestiu de ares de sobriedade e sensatez. O abandono dos referenciais gerais deu um nó na regulação, que não foi desatado por governos ansiosos por deixar, como marcas de suas gestões, clientes-votantes satisfeitos com seus planos de saúde. Todos os que se dispuseram a regular por cima, ou melhor do que a lei, tropeçaram em suas próprias invencionices.
Tentativas de impor ações coercitivas aos planos de saúde falsamente modernizantes provocam mais confusão, porque estimulam que as empresas maquiem a realidade. Já passaram pela ANS dirigentes vinculados à esquerda e à direita do espectro político-partidário, todos se comprometeram com a defesa dos usuários e estímulo à competitividade. Contudo, não houve melhora efetiva para os clientes. Entre 2007 e 2012 o número de demandas judiciais, a maioria referente à negação ou postergação de assistência médico-hospitalar, registradas nos tribunais de Justiça de São Paulo e de Minas Gerais duplicou. Quase metade das empresas registradas na ANS deve à União seja em razão do não pagamento do ressarcimento ao SUS ou de contribuições e impostos.
Desde o inicio, a ANS mostrou-se propensa a favorecer determinados grupos empresariais, inviabilizou o ressarcimento ao SUS e concedeu respaldo a práticas de suspensão de multas, e incentivou a negociação política de punições. De 2003 em diante a nomeação de pessoas indicadas pelos lobbies se tornou uma tradição. Os traços de entreposto de negócios da agência reguladora não se alteraram com o programa de qualificação e divulgação regular de um índice de desempenho e suspensão da comercialização de produtos lançados durante o governo Lula. Medidas tópicas têm um sabor de novidade passageiro. Ziguezagues para não contrariar as empresas não resultaram em políticas eficazes. Por isso, a recente busca de controle dos planos via exigência de cumprimento de prazos não é uma rota segura. O caminho mais curto para implementar uma regulação favorável aos brasileiros é uma linha reta que passe por dentro das leis vigentes.
No inicio do mês as especulações das empresas, contidas em relatórios que circulam amplamente, dos quais a palavra SUS não consta, mas que incluem a expansão (“aumento da penetração do mercado”) dos planos de saúde para 80% da população, foram noticiadas como projeto apresentado ao governo. De acordo com o pronunciamento do ministro Alexandre Padilha, tudo não teria passado de um mal-entendido, amplificado por entidades da saúde pública. Não haverá aportes adicionais de recursos públicos para a demanda por planos de saúde, e o governo não irá patrocinar a comercialização de planos precários.
A coerência entre as palavras e os atos governamentais passará por um teste de fogo. O recém-nomeado presidente da ANS é um notório defensor do sistema público de saúde. Os demais diretores poderão ser escolhidos entre os competentes técnicos concursados ou mediante indicação de lobbies. Só uma ANS livre de empresários disfarçados de especialistas terá a ousadia de cumprir a lei. Dissimulações podem ser mais ou menos duradouras. Mas, quando descobertas, geram desconfianças perenes. Ainda não está esclarecido se a médica de Curitiba e membros de sua equipe atuavam como uma espécie de quadrilha, com interesses exclusivamente comerciais. No entanto, o episódio encarna a representação social da medicina privada versus SUS em sua forma mais grotesca, e expressa com agudeza a necessidade da uma regulação efetiva, de cara limpa.
Ligia Bahia é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro