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As lições do passado que insistem em não serem aprendidas pelos governantes brasileiros

Batizada de gripe espanhola, a pandemia de influenza do início do século XX dizimou cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo – Foto: Revista Careta/Acervo Fiocruz/Reprodução

A aceleração geométrica do coronavírus no globo terrestre e o rastro de mortes, doentes e panes causadas nos sistemas de saúde fazem a ciência e o jornalismo revirarem o passado e inquirirem o tempo de resposta da política. Abrasquianos, parceiros da Abrasco e pesquisadores de diversas interfaces da Saúde Coletiva têm participado de matérias e assinado artigos nas quais apresentam a relação entre epidemias, saúde pública e ações políticas, numa tentativa intelectual de ajudar a dissipar a neblina que assola o presente.

“Em 60 dias, uma pandemia conseguiu deixar um rastro de 35 mil mortes no Brasil. Caixões eram empilhados nos cemitérios por falta de coveiros. Escolas estavam sem aulas. O comércio estava fechado. As ruas, vazias. Os espaços não foram esvaziados por orientação das autoridades sanitárias, como tem acontecido durante a pandemia do novo coronavírus. Não havia pessoas nesses lugares porque elas estavam doentes ou mortas”. Assim começa a matéria “As lições aprendidas – e os erros que voltamos a cometer – da gripe espanhola de 1918”, de Anamaria Nascimento sobre os efeitos devastadores promovidos pela gripe espanhola, publicada no Jornal do Commercio, do Recife. A jornalista ouviu especialistas da história da saúde e da epidemiologia, entre eles, José Cássio de Moraes, integrante da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSSP).

O pesquisador lembrou que a essa pandemia de influenza surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial. “Em março de 1918, há o registro no acampamento militar no Kansas. Em maio, chega ao leste da África. Em agosto, na França. Em setembro, na América do Sul. O espalhamento foi mais lento no mundo (em comparação com a velocidade da Covid-19) porque os meios de transporte não eram os de hoje”, comparou.

José Cássio de Moraes destacou também a alta letalidade e a taxa de infecção da histórica pandemia, encoberta por dúvidas científicas à época em que a ciência começava a consolidar avanços nas áreas da microbiologia e infectologia. “Nem se sabia que era o vírus da gripe porque ele ainda não havia sido identificado”.

Legados, aprendizados e esquecimentos: A matéria traz também a participação de Dilene do Nascimento, historiadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que apontou a criação do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) como um dos principais legados de conscientização promovidos pela gripe espanhola no Brasil. A primeira estrutura federal destinada à saúde pública foi oficialmente aprovada pelo Congresso Nacional em 02 de janeiro de 1920, o que permitiu o início de uma maior amplitude aos serviços sanitários federais e, de quebra, virou o marco da efeméride do dia do sanitarista no país. No entanto, só saiu do papel quase dois anos depois do início das mortes no país, estimadas em 35 mil vítimas fatais.

Já na matéria “Lentidão e descaso com os pobres’: como governos brasileiros reagiram a epidemias na História” publicada no site da BBC Brasil e outros veículos, os abrasquianos Paulo Frazão, do Departamento de Política, Gestão e Saúde, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e integrante do GT Saúde Bucal Coletiva; e André Mota, do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) e integrante da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, destacam a histórica lentidão dos governos brasileiros de plantão em enxergar os segmentos vulnerabilizados nas emergências de saúde, e como o sucateamento das ações e serviços de saúde amplificam emergências sanitárias que poderiam ser melhor conduzidas.

“Na República, tivemos epidemias que foram debeladas, quase sempre sem articulação entre serviços e hospitais e com limites evidentes, já que não havia cobertura de saúde para todas as pessoas, resultando, nesses casos, em muitas vítimas”, explicou André Mota. Para Frazão, “a lentidão, a insuficiência na resposta e o descaso das autoridades para com as populações de trabalhadores, as famílias de baixa renda e moradores da periferia e das favelas têm levado a um número elevado de mortes evitáveis”.

Parceiro e convidado frequente dos congressos da Abrasco e editor da revista científica HCS-Manguinhos, Marcos Cueto escreveu no artigo “Covid-19 e as epidemias da Globalização” que, segundo o historiador da medicina Charles Rosenberg, as epidemias têm geralmente um ciclo que se inicia pela negação, passa pela ressignificação e a resignação e acaba no esquecimento. “Como em outras epidemias, um dos principais perigos que enfrentamos não é somente que se intensifique a Covid-19, mas que voltemos a tolerar o sucateamento da saúde pública e se perca uma oportunidade para acabar com a retroalimentação entre respostas fragmentadas e insuficientes e a recorrência das epidemias” ressaltou o historiador, relembrando o que, enquanto sociedade, não podemos mais fechar os olhos e deixarmos esquecer.

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