Impensável abdicarmos do esforço pelos movimentos sociais e políticos de denúncia das atuais reformas oficiais geradas no Ministério da Fazenda em nome da retomada do nosso desenvolvimento, e iniciadas pela EC-95/2016, que estanca de vez os gastos públicos com o desenvolvimento social e econômico. Tão ou mais importante será um esforço ainda maior e, socialmente mais contagiante e efetivo de, além da denúncia, intensificarmos a formulação e proposição com amplo debate pela sociedade e sua mobilização em torno de inadiáveis reformas efetivamente do interesse de toda a população e do desenvolvimento do país. A reforma política e eleitoral voltada para representação verdadeira dos segmentos sociais no poder Legislativo, tornando-o caixa de ressonância também dos direitos e aspirações das maiorias sociais, e com controle direto da coerência e qualidade no exercício dos mandatos, e o resgate dos pilares republicanos das relações entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Sob esses princípios, também as reformas tributária, previdenciária, trabalhista, fiscal(com auditoria da dívida pública) e outras a serem resgatadas e debatidas amplamente. As maiorias, a quem interessa esse amplo debate e reformas, constituem mais de 94% de toda a população, os que trabalham na produção de bens e serviços, isto é, dependem da produção que gera nosso PIB: são os trabalhadores miseráveis, os desempregados, os assalariados, os autônomos incluindo os de nível superior, os pequenos, médios e parte dos grandes empresários que não passaram a rapinagem da especulação financeira. Lembremos que os grandes rentistas da nossa dívida pública e os agiotas dos empresários produtivos, incluindo os bancos privados, não passam de 3 a 4% da população, assim como a estimativa da respeitada Oxfam Internacional (Comitê de Oxford de Combate à Fome), da equivalência da riqueza da metade mais pobre da nossa população, com a riqueza das seis pessoas mais ricas do Brasil que sugam o nosso PIB.
Nosso país tem o privilégio de contar com intelectuais, técnicos, pesquisadores e estudiosos das nossas universidades, instituições de pesquisa como o IPEA e IBGE, órgãos como a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil), comissões permanentes do Legislativo, centros de estudos e arquivos de alguns Ministérios, amplamente reconhecidos e respeitados nas ciências sociais, políticas e jurídicas, assim como na história, economia, tributação, atuária, e outras. Em sua grande maioria não só vem desmentindo e desmistificando os aspectos enganosos das ditas “reformas oficiais”, como também acumulando grande número de estudos e propostas, estas sim, mais consistentes e voltadas efetivamente para o desenvolvimento e os direitos e aspirações justas da esmagadora maioria da sociedade. No plano político dos debates e fortalecimento dessas propostas para a sua aprovação e legalização, não há como não passar por debates que simultaneamente: a) ganhe apoio e aprimoramentos crescentes dos mais amplos e importantes segmentos da sociedade geradora do PIB e suas entidades, e b) haja especial cuidado de, nesse processo, construir as bases comuns dos estudos e propostas existentes, projetos unitários e suas necessárias etapas.
Desde a Constituição de 1988 a ampliação desse debate na sociedade e sua unificação, não tem ocorrido com a intensidade, prioridade e oportunidade necessárias para disputar e influir efetivamente na direção das políticas públicas em nosso Estado. Desde a coligação partidária do governo federal/1990 até a atual coligação pós-impeachment, passando por todas as demais, os esforços e energias por reformas estruturalmente desenvolvimentistas e democratizantes estariam se concentrando mais na negação das propostas oficiais conservadoras, aparentemente faltando energia e clareza para concentrar-se no recolhimento e unificação das propostas desenvolvimentistas e democratizantes, debatê-las amplamente e disputa-las na opinião pública e no Parlamento. Tem a ver com o atrelamento desde os anos 90, do nosso modelo de desenvolvimento ao capitalismo periférico dependente com elevada desigualdade social. Modelo este, politicamente sustentado por poder Executivo com fortes prerrogativas legislativas (MPs, PECs, etc) que mantem coligações partidárias majoritárias submissas por indicação massiva de cargos no 1º e 2º escalões do Executivo, pesada triangulação empresarial no financiamento de campanhas eleitorais e incluindo MPs com venda de emendas parlamentares (“jabutis”), verdadeira feira nacional de suborno. Tudo concorrendo para subtrair do poder Legislativo seu caráter histórico de “caixa de ressonância da sociedade”.
No prazo político a partir deste abril, alguns recuos já vem sendo impostos ás reformas impostas pelo Ministério da Fazenda e Presidência da República, devido ás manifestações da opinião pública e de parte dos parlamentares, restando ainda extensos retrocessos ao país e á população, a serem evitados. As propostas unitárias e amplamente defendidas pela população, chegarão a tempo para disputarem apoio no Legislativo ainda em 2017? Pelo menos com poder de fogo para negociar uma ou mais etapas com a atual hegemonia? Quais reformas e o projeto de nação a ser debatido no ano eleitoral de 2018 para a população optar? Quais compromissos para o novo governo farão parte do debate eleitoral? Qual o leque de segmentos sociais que deve participar desde já? Ou predominará delegação acrítica pela sociedade a cúpulas partidárias de coligações e personalidades “produzidas”?
É sob esse contexto maior que o SUS constitucional, de radical inclusão social, tem sua estrutura se consolidando no SUS de fato: um sistema pobre para os 75% de brasileiros sem recursos para adquirir planos privados, e sistema complementar para os 25% de consumidores de planos privados desde os mais baratos aos mais caros, mas permanecendo usuários do SUS para materiais e serviços de saúde mais sofisticados e caros, com per capita total de gastos com saúde, entre 4 a 6 vezes maior do que o destinado aos 75% mais pobres. Prossegue inclemente redução do gasto público com serviços próprios, substancial elevação das compras públicas de serviços privados complementares e polpudos subsídios públicos às empresas privadas de planos de saúde.
(Nelson Rodrigues dos Santos, chamado pelos amigos da Saúde Coletiva de Nelsão, foi Professor Titular de Saúde Coletiva na Universidade Estadual de Londrina, Consultor da OPAS/OMS, Professor de Medicina Preventiva e Social da Unicamp. Assumiu funções de direção no Sistema Público de Saúde, nos níveis municipal, estadual e nacional. Atualmente é Professor Colaborador da Unicamp, Presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa e membro do Conselho Consultivo do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes)