Um dos pesquisadores mais reconhecidos internacionalmente e com um dos maiores índices de produção científica, o abrasquiano Cesar Victora, professor emérito da UFPel, publicou artigo de opinião no site GaúchaZH no qual destaca o papel civilizacional do ensino público superior no Brasil e a liderança das universidades federais nesse processo. Leia abaixo na íntegra ou clique aqui para ler a publicação original.
“Cursei a Faculdade de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul na década de 70. Eu e todos os meus colegas de turma nos formamos médicos sem pagar um centavo. Fiz doutorado em Londres com bolsa de pesquisa concedida pelo CNPq. Atuei como professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) de 1977 a 2009, e desde a minha aposentadoria, sigo atuando como Professor Emérito, como parte do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia da UFPel.
Ao longo da minha carreira, enfrentei a escassez de recursos para a educação em geral e para a pesquisa científica em particular. Só para dar um exemplo, nosso segundo estudo de coortes de nascimentos, programado para iniciar em 1992 (dez anos após a primeira coorte), acabou sendo iniciado somente em 1993 por atraso na chegada de recursos financeiros. Além disso, em várias ocasiões, deixamos de acompanhar os participantes de nossos estudos, ou acompanhamos apenas uma sub amostra desses, em função da ausência de financiamento. Mesmo com tais dificuldades, conseguimos avançar o conhecimento científico e acreditamos ter ajudado a mudar a vida de milhões de pessoas ao redor do mundo. Passo a citar alguns exemplos.
Na década de 1970, as mães costumavam amamentar seus filhos, em média, por 2 meses e meio. Na época, predominava a cultura da mamadeira e a venda massiva do leite em pó. Na década de 1980, nossos estudos foram pioneiros em mostrar que a amamentação exclusiva até os seis meses de idade prevenia a mortalidade infantil e diversas doenças. A política da Organização Mundial da Saúde mudou em consequência deste novo conhecimento, e hoje a amamentação exclusiva por seis meses é uma recomendação consolidada no mundo todo.
Até o início dos anos 1990, o crescimento de crianças ao redor do mundo era monitorado por curvas de crescimento construídas nos Estados Unidos, tendo como base uma amostra de crianças não amamentadas. Em 1997, a Organização Mundial da Saúde lançou – inicialmente em Pelotas – um estudo que incluiu crianças seis países. Tal estudo gerou, em 2006, novas curvas de crescimento infantil, hoje usadas em mais de 140 países. Milhões de crianças de todo o mundo, inclusive em todo o Brasil, têm seu crescimento avaliado adequadamente através das novas curvas de crescimento.
Até a virada do milênio, crianças de 0 a 5 anos eram tratadas de forma igual nos programas de intervenção nutricional, desconsiderando as diferenças entre cada faixa de idade dentro deste intervalo. Com base nos estudos conduzidos na UFPel e outros centros, surgiu o conceito dos 1000 dias, que englobam a gestação e os dois primeiros anos de vida. Esse intervalo de 1000 dias representa a melhor janela de oportunidades para proteger a vida do recém-nascido e garantir benefícios em longo prazo na saúde, cognição e capital humano.
Até o início dos anos 1990, o senso comum preconizava que os bebês deveriam deitar de lado para dormir. Transmitia-se entre gerações que essa posição protegeria o bebê de engasgar-se com o próprio vômito. A posição também era recomendada por pediatras. Evidências científicas, produzidas aqui e em outros países, mostraram que a posição mais segura para o bebê é de barriga para cima. Campanhas realizadas no Brasil e em outros países reduziram as mortes súbitas na infância em mais de 60%.
Todas essas pesquisas foram conduzidas na Universidade pública, financiadas pela população brasileira. Por isso, não posso me omitir diante do recente corte de verbas nas instituições federais de ensino. Nenhum país evolui cortando recursos em educação, ciência e tecnologia.
A falta de apoio à pesquisa nas universidades federais tem levado a uma verdadeira diáspora de jovens cientistas formados em instituições públicas, com verbas públicas. Nosso Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia tem formado cerca de 10 doutores por ano, sendo que pelo menos dois ou três deles têm ido trabalhar no exterior e jamais retornam, por falta de recursos e oportunidades em nosso país. Temos atualmente ex-alunos que são pesquisadores nos Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Austrália, Holanda e França, entre outros países.
As Universidades Federais são um patrimônio da sociedade brasileira. Elas precisam de mais, e não de menos, investimentos.”
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