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Atmosfera malsã – artigo de Ligia Bahia

Vilma Reis

Foto: Abrasco

Neste mês de outubro, a professora Ligia Bahia, membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão da Abrasco, descreve o cenário atual da Saúde no Brasil, diante da austeridade. Confira abaixo o artigo na íntegra, publicado no jornal O Globo nesta segunda-feira 26 de outubro:

Em outros tempos, médicos e políticos do mundo moderno e do Brasil Imperial combateram ares contaminados, que comprometiam a saúde das populações e afetavam as economias dos países. Malignidades da atmosfera, o ar corrupto e corruptor, foram explicações encontradas para controlar e eliminar odores patológicos da decomposição. As sensações sobre emanações mefíticas que orientaram ações dos higienistas remodelaram costumes e práticas cotidianas da população, transformaram meios urbanos e naturais.

Interpretações sobre os males da saúde, baseadas na razão, nas evidências científicas, consideram que os determinantes ambientais não são as únicas fontes de risco; os sociais, os comportamentais, os genéticos e os serviços de saúde interagem. São infinitas as possibilidades de combinações e gradações dos fatores que afetam a saúde. As responsabilidades não podem ser atribuídas a uma única causa. As intervenções para obter melhoria dos indicadores de saúde e qualidade de vida devem ser necessariamente abrangentes.

As atuais recomendações para a organização de cuidados à saúde conjugam a sabedoria, a percepção sobre o estado de saúde dos indivíduos e o conhecimento sobre a natureza de povos ancestrais com as alternativas baseadas na racionalidade médico-sanitária. O SUS baseou-se no desenho contemporâneo de sistemas de saúde, contempla ações individuais e coletivas, pesquisa tecnológica, formação de recursos humanos e participação popular.

O esforço para construir uma ordem humanizada não foi derrotado pela história. O Brasil eliminou, no século XXI, o tétano neonatal, o sarampo e a rubéola. Neste ano, em função do aumento da renda, saiu, pela primeira vez, do mapa da fome que a ONU divulga regularmente. Políticas públicas, arrancadas de um passado desigual e autoritário, estabeleceram uma barreira efetiva de contenção às injustiças.

No entanto, a atmosfera de debates decadente, mal-humorada, autoriza julgamentos indevidos da política de saúde pública. A grade de suspeição, sob a qual nada é o que parece ser e só se revela quando decodificada por iniciados, tornou-se uma ferramenta de uso geral. Serve acusar falhas, erros rasos de conduta de conselheiros de saúde. Também é útil para indiciamentos de maior alcance como a condenação do SUS aos cortes de recursos da política de austeridade fiscal.

Especulações idiossincráticas, busca por coerência e significado em coincidências e abordagens super confiantes sobre temas, cujo domínio é complexo, conformam a base de argumentação de pretensos insatisfeitos com as instituições públicas. Estas seriam uma fonte contínua de emanação do mal, da corrupção. Tirar do caminho o Conselho Nacional de Saúde e o que se acumulou em termos de ética na pesquisa foi a sentença proferida por um ex-dirigente governamental, que migrou da militância política para a defesa dos interesses de produtores de medicamentos.

Quem se senta no banco das testemunhas precisa saber quem são os autoinstituídos magistrados; contudo, o mais importante é o exame dos fundamentos da acusação. Omitir os trágicos eventos adversos causados pela talidomida e as exigências de declaração de conflitos de interesses e aprovação pelos comitês de ética para a publicação de trabalhos científicos banalizam as tensões, os conflitos. A controvérsia recente sobre a fosfoetanolamina para o tratamento de câncer, substância não registrada pela Anvisa, evidenciou a importância da realização de estudos isentos e monitoramento público dos produtos para saúde.

Simplificações, divisões em extremos, culpados e inocentes, bons e maus, impedem a compreensão sobre responsabilidades e ambivalências. Mudanças são e serão sempre necessárias, desde que propiciem a melhor destinação e o uso responsável dos recursos públicos. Todos têm o direito de arrogar para si o status de suprassumo ético. O que fica por equacionar é a adequação dos papéis aos personagens e se as polêmicas sobre a saúde devem ser encaradas como uma batalha entre santos e pecadores. Caso as políticas de saúde fossem apenas um obstáculo ao mercado, ao progresso, por que razão pessoas indicadas para altos cargos da administração pública seriam atraídas a exercer funções de articulação das demandas de empresas privadas?

Para não retroceder, para seguir avançando na melhoria das condições de vida, é imprescindível estabelecer uma vigilância atmosférica em relação à discussão sobre saúde, reivindicar um ar respirável. A redução dos recursos públicos para a saúde contrasta com as tendências internacionais e terá impactos negativos. O pagamento de impostos condensa uma relação de reciprocidade, orçamentos públicos se destinam a pagar compromissos estabelecidos no passado e investimentos em projetos futuros. A interrupção de cuidados à saúde e a destinação do fundo público para atender interesses privados imediatistas oneram injustamente os contribuintes, quebram o SUS, desvalorizam um empreendimento coletivo, remetem a saúde brasileira à insustentável e insegura condição de subalternidade aos mercados internacionais.

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