Em artigo publicado no jornal O Globo, na edição desta segunda-feira, 5 de junho, a professora Ligia Bahia, membro da Comissão de Política, Planejamento e Gestão em Saúde da Abrasco, fala sobre as engrenagens de grandes negociações de compra e venda de empresas de planos de saúde e a decadência dos empreiteiros que transformou as empresas de planos de saúde e laboratórios em principais alvos de propina para os políticos e executivos do governo.
Pelo que se ouve, a Lava-Jato chegou às empresas de planos de saúde. Mas parece que não assustou. A imposição de um reajuste das mensalidades dos planos de 13,5%, mais que o dobro da inflação, segue sendo extraída do velho padrão de articulação política toma lá dá cá. A nomeação dos dirigentes da agência de regulação é definida por senadores acusados de corrupção. Abaixo das negociações palacianas, labutam lobbies financiados pelas próprias empresas, que manipulam informações toscas e as divulgam como indicadores ainda mais inconsistentes. Os números saídos das mesas de escritórios de lobistas, calibrados pelo cálculo da força de pressão das empresas, orientam uma política pública que afeta mais de 50 milhões de pessoas. A consequência imediata do extrativismo político é a intensificação do extrativismo do fundo público.
As empresas de planos, que preferem perder os clientes impossibilitados de pagar reajustes muito elevados, precisam assegurar suas taxas de retorno e demandarão mais isenções e deduções fiscais, alongamento eterno e renovado de dívidas, créditos e anistia de multas. Para tanto, necessitam recrutar e institucionalizar a militância de empresários e executivos favoráveis à redução dos preços pagos a profissionais e estabelecimentos de saúde, restrição de coberturas e formulação de estratégias de competição com o SUS. Fica caro criar e manter organizações pagas, em primeira e última instância, com recursos retirados dos contribuintes e clientes, que aderem aos contratos privados em busca de garantia de acesso e utilização de serviços. É dinheiro jogado nos altos salários e comissões de intermediadores de transações e no ralo da corrupção.
A existência de uma possível rota da “arrecadação de propina” envolvendo empresas de planos de saúde e a Agência Nacional de Saúde Suplementar está inteiramente legível no documento de colaboração premiada de Delcídio do Amaral com o Ministério Público Federal. No anexo 28, página 107, lê-se: “especial atenção deve ser dada à ANS e Anvisa, cujas diretorias foram indicadas pelo PMDB do Senado, principalmente pelos senadores Eunício Oliveira, Renan Calheiros e Romero Jucá. Jogaram pesado com o governo para emplacarem os principais dirigentes dessas agências. Com a decadência dos empreiteiros, as empresas de planos de saúde e laboratórios se tornaram os principais alvos de propina para os políticos e executivos do governo.”
Desde que Antonio Palocci foi preso, se ouve que o setor contrariou os limites acústicos da emissão de ruídos toleráveis pelas regras legais. O ex-ministro assessorou a maior empresa de planos de saúde do Brasil. Sua delação poderá expor as engrenagens de grandes negociações de compra e venda de empresas, inclusive internacionais.
Mas a proximidade do perigo, ao contrário de estimular cautela, impulsionou a celeridade das novas indicações para a ANS e da tramitação de medidas sobre redução do pagamento de impostos. A recondução de uma diretora, já sabatinada pelo Senado, e o registro pela Casa Civil de nomes para outros cargos foram realizados em tempo recorde. A Presidência da República e o Ministério da Fazenda apoiaram a recusa das empresas de planos a pagarem o ISS de acordo com o local de prestação do serviço. A demanda empresarial só não foi plenamente acolhida porque as bases políticas municipais se insurgiram contra a perspectiva de não arrecadação de cerca de R$ 6 bilhões. Por um triz, as empresas não emplacaram a habitual e bem-sucedida dobradinha: reajuste estratosférico das mensalidades e não pagamento de impostos. Desta feita, o argumento exposto no veto do presidente Temer não teve audiência. O som da afirmação de que o pagamento do tributo iria encarecer os planos foi abafado pelo barulho causado pela autorização de um índice para o reajuste das mensalidades incompatível com a realidade econômica do país.
Precisamos apurar nossa capacidade de audição e leitura para discriminar causas subjacentes e condições que precipitam problemas. Se os pacientes morrem de infarto, mas são fumantes, é necessário ampliar o espectro de ações preventivas e curativas. Analogamente, a resposta à pergunta sobre por que o SUS não se tornou universal e de qualidade não é a mesma que se seria dada a indagação de por que as empresas de planos passaram a ditar as políticas públicas de saúde. Os princípios básicos de responsabilidade e solidariedade dissociam contribuições sociais das recompensas individuais. Por isso, o Brasil tem SUS.
Consequentemente, a conjugação da racionalidade econômica com democracia política requer a revisão da proteção estatal indevida a agentes que anunciam orgulhosamente integrar o mercado. Entidades empresariais da saúde que assinaram manifestos exigindo mudanças políticas deveriam, de livre e espontânea vontade, se adiantar à Lava-Jato e adotar o saudável hábito de tomar uma chuveirada cívica diária.