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Back to the Future-se – Artigo de Naomar de Almeida Filho

Bruno C. Dias

Arte original: Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica, Profissional e Tecnológica (SINASEFE)

O projeto do governo Bolsonaro intitulado Future-se foi apresentado há pouco mais de um mês, num evento político formatado como show midiático. Proposta auto elogiada como “inédita e inovadora” – curioso este pleonasmo –, o exame do material divulgado permite verificar que não é uma coisa, nem outra: nem inédito nem inovador. Uma revisão técnica sumária mostra que se trata de proposta inconsistente, confusa em vários aspectos, incompetente e anacrônica.

Os objetivos específicos do Future-se compõem uma lista de pontos organizados em três eixos: Gestão, Governança e Empreendedorismo; Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação; e Internacionalização. De pronto, ressalta flagrante inconsistência já na designação dos eixos, cada um de natureza distinta da dos outros: um conjunto de meios (gestão), uma das funções da universidade (pesquisa), um campo geral de atuação (internacionalização). A lista de pontos da proposta é incongruente, sem parâmetros e critérios organizadores, agregando temas díspares como bolsas para atletas, mudanças na Lei de Responsabilidade Fiscal, criação e consolidação de startups, publicação de periódicos, reconhecimento de diplomas, aluguéis e Parcerias Público-Privadas (PPP), junto com obviedades, como instalar centros de pesquisa e estimular intercâmbio internacional.

Porém, o problema maior do Future-se não se encontra em objetivos e eixos de atuação, e sim nas estratégias propostas: para autonomia administrativa, contratos de gestão com organizações sociais (OS); para autonomia financeira, fundos de investimentos.

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A ideia (nem inédita, nem inovadora) de usar OS como apoio à gestão das atividades-fim das universidades é um anacronismo imperfeito ou desviado, cópia malfeita. As OS foram propostas há mais de duas décadas no Plano de Reforma do Estado do Governo FHC como pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, voltadas “ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde”. Nos parâmetros daquele plano, propunha-se que universidades se tornassem organização social pública não-estatal. Mas realmente não é isso o que postula o Future-se, na medida em que propõe que as universidades federais continuem sob a égide do MEC/MPOG e sob controle ainda maior dos sistemas de auditorias e contas públicas, mesmo que sua administração seja realizada por OS, gerenciando compras, serviços, investimentos e pessoal pelas regras do setor privado.

A proposta é confusa em relação às formas de financiamento, supostamente inovadoras. No portal do MEC, promete-se “ações inéditas”: criação do Fundo Soberano do Conhecimento (FSC) e um funding de R$ 100 bilhões. A Minuta de Projeto de Lei menciona um Fundo de Autonomia Financeira (FAF) e um fundo de investimentos em regime de cotas. Aparentemente, portanto, seriam três tipos de fundos. Porém, apesar de destacado no farto material de imprensa, o FSC não se encontra na minuta de PL divulgada. Mesmo que os três (ou dois) fundos alcancem taxa de captação extraordinária – improvável pois o ressabiado empresariado nacional dificilmente imobilizaria capital em instituições desvalorizadas como improdutivas pelo próprio governo federal –, renderão no máximo a média da Bolsa de Valores (15% em 2018), gerando até 7 bilhões ao ano. Na hipótese mais otimista, deduzidas taxas, a soma dos rendimentos não ultrapassaria 1/10 do necessário, forçando a utilização de parcela do principal dos fundos.

A incompetência técnica do Future-se se mostra nas fragilidades (inclusive legais) da proposta, junto com a remota possibilidade de captação financeira no mercado para integralizar os próprios fundos, sobretudo no atual contexto de estagnação econômica. Ressalta, nesse conjunto de problemas, a instabilidade programada dessa estratégia de financiamento rentista das IFES, sem previsão de refill do capital do fundo. Tudo isso nos dá a impressão de que a proposta sequer foi avaliada pelos experientes operadores de mercado que compõem a equipe econômica e pelas procuradorias jurídicas do governo.

A constituição de fundos de investimentos para financiar atividades acadêmicas não é inédita, nem inovadora. Remotamente, remete aos endowments das universidades norte-americanas (alimentados por generosas doações e expressivos overheads). Mas não estamos nos EUA, realidade socioeconômica ostensivamente tomada como objeto de desejo pelo bolsonarismo, nem precisamos ir muito longe. O sistema de autonomia financeira das universidades estaduais paulistas baseia-se em fundos patrimonial e de investimentos tanto para funcionamento das instituições quanto para financiar atividades de pesquisa e inovação. Porém não há como comparar os fundos do Future-se com o modelo das universidades paulistas, por duas diferenças básicas: primeiro, a alimentação dos fundos de financiamento das instituições paulistas de pesquisa e ensino superior é contínua, advém de quase 10% da arrecadação tributária estadual; segundo, esses fundos são autogeridos, com participação ativa dos dirigentes das universidades.

A análise de outras medidas do Future-se, todas no registro do nem-nem (nem inéditas, nem inovadoras), demonstra que se trata de proposta mal alinhavada para uma reforma que, de fato, deforma. Por um lado, amplia a inserção da universidade no Mercado, porém a mantém na tutela bonapartista do Estado (no caso brasileiro, bolsonarista), e remenda de forma arriscada o grave e crônico problema da gestão administrativa sem autonomia, mas aprofunda a vulnerabilidade da instituição às amarras burocráticas e aumenta a intensidade e diversidade de controles institucionais. Por outro lado, ameaça a liberdade de pesquisa e criação com políticas arriscadas de indução da competitividade acadêmica, promovendo assim um tipo novo e perigoso de canibalismo institucional.

Na análise otimista de alguns, que conseguem ver pontos positivos na proposta do Futurese, esta seria uma tentativa de reforma universitária à la Plano Bresser, ao generalizar o modelo de gestão das universidades estaduais paulistas. Se este fosse o caso, seria um mero fake do modelo das estaduais paulistas, aliás bastante piorado. Enfim, podemos avaliar a proposta do MEC bolsonarista como paradoxalmente uma tentativa de volta ao passado, permitindo a blague amarga de ser um filme que já vimos, um Back to the Future-se pobre e ressentido.

* Naomar de Almeida Filho é vice-presidente da Abrasco e pesquisador 1-A do CNPq. Professor Titular Sênior do ISC/UFBA, ex-Reitor da UFBA e da UFSB e atualmente Professor Visitante no Instituto de Estudos Avançados da USP. Confira a versão completa na página do autor nas redes sociais

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