“Quase quietos, estamos avançando muito na implantação da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB, no que tantos de vocês tanto têm nos apoiado. Por favor, reservem um tempinho para ler devagar este relato do Professor Pedro Meira Monteiro, Chairman do departamento de Espanhol e Português da Princeton University, que há pouco nos visitou em Itabuna e Porto Seguro. Ficaremos felizes em receber a opinião (e o sentimento) de vocês, especialmente neste momento de profunda incerteza no contexto político e econômico do país, que tanto ameaça projetos como o nosso. Saudações universitárias grapiúnas! Naomar” Foram estas as palavras do Reitor da UFSB, professor Naomar de Almeida Filho, sobre as impressões do professor Pedro Meira Monteiro, integrante da comitiva da Universidade de Princeton, que escreveu sobre as ideias, ações e pessoas que constroem a UFSB, e que foram registradas em seu blog. No texto A Bahia tem um jeito para o Brasil, o professor discorre a respeito do projeto da instituição, do contexto atual das universidades federais e expõe sua análise sobre o que representa a experiência da UFSB em diversas dimensões, da prática do ensino ao estabelecimento de interfaces extramuros. Pedro é professor titular na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, onde dirige o Departamento de Espanhol e Português. Seu blog se chama pena vadia.
Confita ainda a galeria com fotografias da jornada da comitiva de Princeton no Sul da Bahia.
No fim de julho, eu e dois colegas de Princeton visitamos a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Estivemos em dois de seus campi – Itabuna e Porto Seguro – e em alguns dos inúmeros galhos que a universidade cultiva na região. São colégios universitários como o de Coaraci e escolas como o CIEPS (Complexo Integrado de Educação de Porto Seguro). Isso sem contar a presença da universidade em aldeias indígenas como a dos pataxós, que visitamos em Porto Seguro, ou o assentamento Terra Vista, em Arataca.
A UFSB é uma universidade que aponta, vigorosamente, para sua função social e para a excelência acadêmica. É um balanço vertiginoso, nem sempre resolvido, espécie de sintoma que parece expor a grande contradição destes tempos de refluxo, no Brasil, dos projetos sociais e dos valores republicanos: inclusão e excelência, inclusão ou excelência?
O entusiasmo dos alunos é contagiante. Expressões como “currículo integrado”, “universidade popular” e “bacharelado interdisciplinar” estão no ar, tanto na fala das pessoas quanto nos prédios. Nunca vimos tanto “conteúdo” como nas paredes de lá. É como se a instituição se inscrevesse a si mesma, lavrando a própria pele, nos cartazes que se estendem pelos corredores, tentando dar conta de sua missão: incluir e integrar.
Se a ilha da utopia é apenas uma ficção, a ficção é a fôrma em que se molda o novo. Não deixa de ser irônico que a UFSB se erga exatamente onde se pensa que o Brasil começou. A diferença é que as muitas “teias” que a universidade cultiva incluem, claramente, aqueles que foram deixados à margem dos retratos oficiais da pátria: indígenas, negros, pobres, trabalhadores, mulheres… Toda a linhagem dos deserdados ressurge nas faces que vimos e nas falas que ouvimos, entre impressionados e emocionados.
(Estatística crua: são mais de 80% de cotas na universidade, baseadas em critérios múltiplos [negros, indígenas etc.], que respondem exatamente à demografia da região. A filosofia é cristalina: se esse é o retrato do local, por que não replicá-lo no corpo discente? Mas o que acontece quando nos vemos na foto depois de haver incluído a todos? Como lidar com a imagem desconcertante do que somos?)
Por mais que se queira, é impossível sair do lugar de onde se fala. Éramos três professores de Princeton, enfrentando a desconfiança (justa) por nossa procedência, ao mesmo tempo em que, suponho, despertávamos curiosidade pelo nosso interesse (por que estávamos ali, e não nas universidades “centrais”?). Não importa quantas vezes dissemos que Princeton tem se preocupado em diversificar seu corpo discente, ou que temos, em nossas salas de aula, estudantes de primeira geração, indocumentados, gente humilde lutando para “navegar” um ambiente de elite que pode ser apavorante, com seu discurso de excelência e seu inevitável ar de superioridade. Não importa. A nossa presença era estranha naquele lugar, talvez mesmo um pouco suspeita.
A primeira turma da UFSB ingressou em 2014 e está agora cursando o terceiro ano do primeiro ciclo, preparando-se para novos saltos rumo à especialização e à profissionalização. O modelo da universidade é uma mistura curiosa, que vai buscar um pouco da filosofia que guiou o acordo de Bolonha (que vem redesenhando o ensino superior europeu desde a última década) e o sistema norte-americano com sua formação básica e áreas de especialização escolhidas apenas ao longo do curso. Como se lê na “Carta de Fundação” da universidade: “No plano curricular, o Estatuto incorpora o sistema de ciclos de formação, com base em modalidades inovadoras de graduação no Primeiro Ciclo (Bacharelado Interdisciplinar e Licenciatura Interdisciplinar). No Segundo Ciclo, posicionam-se formações profissionais e acadêmicas no nível de graduação; no Terceiro Ciclo, predominam mestrados profissionais, acoplados a Residências redefinidas como ensino em serviço, em todos os campos de formação”. Trocando em miúdos, o aluno entra na universidade, sem a escolha prévia de um curso, e só depois define sua área de especialização e de formação profissional.
Resumindo bastante o que é uma complexa engenharia institucional e pedagógica, trata-se de promover uma educação que supere os marcos disciplinares rígidos, mas que drible também o gargalo cruel dos exames de admissão. Suponhamos que uma menina negra, de família muito humilde, consiga entrar num dos colégios universitários que se instalaram em cidadezinhas antes isoladas (os “colégios universitários” contemplam o primeiro ciclo da graduação e formam uma rede de integração social significativamente batizada de “Rede Anísio Teixeira”). Após três anos cursando a grade multidisciplinar do primeiro ciclo, aberta irrestritamente a todos os alunos ingressantes, tal menina poderá, por exemplo, enfrentar o “gargalo” do curso de medicina muito mais qualificada do que se tivesse que enfrentá-lo quando de sua entrada no primeiro ano da universidade. Afinal, a etapa profissionalizante da formação se dá somente a partir do segundo ciclo. Quando visitamos a UFSB, os critérios para a entrada no segundo ciclo, em cada uma das diferentes áreas de especialização, eram objeto de acaloradas discussões: que porcentagens de cotas sociais e raciais devem valer nesse segundo corte, agora que os cursos profissionalizantes estarão em disputa?
Na verdade, essa hipotética menina negra, de família humilde (e quantas não-hipotéticas meninas nós vimos…), jamais sonharia entrar num curso concorrido como medicina. Ao dar forma a um nível básico universal e transdisciplinar, o primeiro ciclo oferece o degrau que faltava àquela jovem para enfrentar o desafio de projetar-se numa carreira socialmente prestigiada. Em suma, o bacharelado interdisciplinar no primeiro ciclo permite transferir as vagas, tradicionalmente loteadas por um grupo privilegiado, para aqueles que estiveram sempre fora do sistema.
É uma revolução? É… É simples, assim? Não, não é…
Claro que não é simples. Os desafios são imensos e, acima de tudo, o projeto foi pego no contrapé da crise e do golpe parlamentar que resultou no impeachment de Dilma Rousseff, no ano passado. A UFSB foi a última universidade federal implantada antes que o país fosse jogado na bacia das almas em que seu futuro é vendido a preço de banana. Ironicamente, escrevo estas linhas cheias de esperança ao mesmo tempo em que se anuncia mais um gigantesco corte de recursos, que compromete o funcionamento e o futuro das universidades federais.
A falta de investimentos, ainda que enfrentada galhardamente por uma gestão que faz milagre com o pouco que tem, é gritante. Mas tudo é paradoxal na UFSB. Os professores têm alto nível de formação e ao mesmo tempo têm que enfrentar uma dupla precariedade, tanto a da infraestrutura quanto a das carências gigantescas que um alunado “universal” naturalmente traz.
Os poucos dias que passamos com os admiráveis colegas, alunos e funcionários da UFSB não foram suficientes, é claro, para nos dar uma ideia precisa do que eles estão experimentando com a crise. Mas foram suficientes para nos brindar com o sabor de um dilema: excelência acadêmica ou universidade popular?
O projeto da atual reitoria quer enfrentar o dilema e substituir a conjunção alternativa (excelência ou povo) por uma conjunção aditiva (excelência e povo). O problema é imenso e imagino que dê azo aos mais acesos debates. Na simples mudança da conjunção se explicitam os desafios de uma instituição que resolveu abrigar em seu seio aqueles que foram historicamente mantidos longe dos primeiros degraus da escada social. Abusando de uma caricatura (embora eu suspeite que a UFSB tenha tornado inúmeras caricaturas realidade), trata-se da velha questão: a filha do faxineiro aparecerá, à noite, na mesma sala de aula que seu pai limpou à tarde?
Mas quem se dispõe a enfrentar a precariedade da formação, o letramento incompleto, o “capital cultural” baixíssimo dos filhos e das filhas da classe trabalhadora brasileira? Não há algo de missionário em cada um dos colegas da UFSB? E não é fácil (talvez hipócrita) admirar o desprendimento e a abnegação do corpo docente, quando o que vivemos foram apenas três dias de uma visita de resto maravilhosa? Afinal de contas, muito em breve eu e meus colegas estaremos de volta ao nosso idílico campus em Nova Jersey, que é um ambiente cheio de privilégios e de recursos abundantes, quando comparado ao Brasil.
São questões que levamos conosco, em mais de um sentido. Em parte, nossa curiosidade diante da UFSB tem a ver com a angústia que sentimos ao ver o Brasil de longe e perceber que o projeto inclusivo da última década vai sendo combatido e programaticamente desmontado no plano federal. Isso sem contar o preocupante ressurgimento de valores antirrepublicanos que julgávamos enterrados ou amortecidos, e que saíram da toca com uma força insuspeitada, como se a Constituição de 1988 tivesse sido apenas um obstáculo erguido e agora pronto a ser derrubado. No Brasil de hoje, o “fascismo” já não é apenas força de expressão.
A espiral da violência urbana e rural tem seu correlato, ao que tudo indica, na vertigem que leva o país à direita, o que é um tema complexo, que não me cabe aqui discutir. Apenas registro que a nossa tímida aproximação não se explica fora de um interesse pelo que a crise brasileira e mundial vai gerando de novo e resistente, a contrapelo e para surpresa de muitos. A despeito da contrariedade e das adversidades, a teia de valores que se costura no sul da Bahia, em torno de um projeto como o da UFSB, é admirável. Dá mesmo vontade de testar essa malha, apertá-la, observar seus nós, experimentar seu balanço. Não há dúvida de que os solavancos são muitos, mas é uma rede necessária, vital para os que ainda acreditamos na democracia e na inclusão social, em qualquer parte do mundo.
Corro o risco de estar idealizando. Mas quem pode passar uma semana no sul da Bahia sem voltar fazendo malabarismo com as ideias…? Deixando que a imaginação corra solta, pergunto-me o que será da universidade e da região em alguns anos. Havia uma dinâmica de sonhos no ar. Em Porto Seguro, ouvimos dos responsáveis pela escola de ensino médio, completamente mudada e reformada, que “nós fomos sonhados” pela UFSB. Os lindos projetos dos alunos, suas falas, o calor e o vigor de seus desejos, vibravam no ar, palpáveis. Ou – mais uma vez – estavam nas paredes, como vimos na impressionante exibição de desenhos ao longo do corredor que nos levava à sala de aula, onde nos reunimos com professores e estudantes. A aula, aliás, começava sempre fora da sala de aula.
“Alegria” e “solidariedade” estão na “Carta de Fundação” da universidade, ao lado da defesa de uma noção clara de autonomia, na esteira da criação das universidades modernas, no pós-Iluminismo. Não é pouca coisa. Faz também pensar nos sonhos libertários dos anos sessenta, abafados pela ditadura, no Brasil. Faz pensar em Hélio Oiticica e sua defesa de uma sensibilidade tecida nas “quebradas” do mundo, atenta aos saberes locais, propondo que as luzes afinal cheguem não como salvaguarda absoluta da civilização, mas como instrumento a serviço do sujeito que quer emancipar-se. Mas há que lembrar que os iluministas se encantaram pela dimensão individual da autonomia, e o que está em jogo, hoje mais que nunca, é a dimensão coletiva de uma sempre protelada libertação.
De fato, corremos o risco de estar sonhando. O dia a dia aponta para outras demandas e urgências, para carências e muros intransponíveis. A realidade dura não se reduz à idealização de quem vê tudo de fora. Mas não será justo dizer que o Brasil está suspenso diante desse sonho? O impasse civilizacional que se vive em nível mundial tem a ver com o esgotamento de um modelo de exploração insustentável. Os freios ao avanço impiedoso do dinheiro estão, ainda e sempre, escondidos nas formas de resistência local, de populações inteiras cujo potencial o atual modelo destrói estupidamente. (De repente, noto que estou abusando dos advérbios e dos adjetivos; é sinal de que o sonho se aproxima do delírio.)
Talvez seja uma fantasia pesada demais para carregar, essa da liberação. (Insisto que é fácil sonhar, quando a realização do sonho pesa nas costas dos outros.) Mas o que está acontecendo no sul da Bahia dispara, de fato, a imaginação de melhores tempos. A noite que passamos com os estudantes do Colégio Universitário de Coaraci foi inesquecível, dentre vários outros momentos em que nos emocionamos tanto. Inquiridos sobre a experiência universitária, os alunos que ouvimos, sem exceção, disseram que seu desejo é mesmo “fazer pesquisa”.
Perguntamos que tipo de pesquisa tinham em mente, e meu colega João Biehl me confessou mais tarde que esperava respostas ligadas à dor e ao sacrifício: epidemias, violência na região, carências de todos os nomes. Para nossa surpresa, as respostas apontavam para a identidade do lugar: quem somos, como entender de onde viemos, mas também os caminhos ainda não trilhados. Havia um impulso afirmativo onde esperávamos a queixa; era o plusaparecendo, onde prevíramos apenas o déficit. Foi quando soubemos de um fantástico projeto de recuperação da história de um rio da região, agora morto e seco, mas reativado, na memória local, pela pesquisa dos estudantes. Ouvimos também sobre a trajetória de uma banda dali, que foi do metal mais pesado ao blues, ao jazz e à MPB, em pura interrogação musical. Pesquisa, na boca dos estudantes, é a senha de uma janela insuspeitada para o mundo. No sul da Bahia, Paulo Freire tornou-se muito mais que um nome.
Divertimo-nos muito com os alunos. Era encantador ouvi-los, enquanto o reitor da universidade manejava, como um menino diante de seu videogame novo, o sistema de transmissão simultânea da nossa aula, que era acompanhada “em tempo real” por alunos e colegas de outros campi e colégios universitários. Lembrei então dos galos do poema de João Cabral de Melo Neto: “[…] e de outros galos/ que com muitos outros galos se cruzem/ os fios de sol de seus gritos de galo,/ para que a manhã, desde uma teia tênue,/ se vá tecendo, entre todos os galos.”
Em Porto Seguro, perguntei sobre como enfrentar o dilema do “empreendedorismo”. Por um lado, os jovens decanos (mais uma contradição em termos que nos oferece o sul da Bahia…) dividiam seu entusiasmo com a possibilidade de implantar incubadoras de pequenas empresas na região. De meu lado, franzi a testa e perguntei: mas se os valores defendidos a ferro e fogo pela universidade apontam para o coletivo e para os saberes locais, não haverá algo contraditório nessa aposta no sucesso individual, que a noção de “empreendedorismo” inevitavelmente carrega? A questão gerou algum (saudável) debate, mas a resposta, ao fim, foi clara e incisiva: o que deveria nascer das incubadoras não é a “empresa”, em seu sentido convencional de exploração e acumulação descontrolada, mas sim a potencialização das iniciativas baseadas nos saberes locais, nas práticas e na vida de populações que vivem ali há muito tempo.
Recordo ainda o nosso encanto, quando entendemos que os cientistas, que se dedicam à extraordinária faixa de coral do mar da região, podiam trabalhar em conjunto com os docentes e alunos de Artes e de Humanidades. Afinal, que narrativas orais sustentam, também, a existência daquele bioma? O que as populações locais têm a dizer, a aprender e a ensinar? O que elas contam a respeito daquele lugar? Como o reinventam cotidianamente? De repente, pude me ver dando uma aula de literatura sobre os corais, entendendo-os como um ambiente integrado de que não estão ausentes as pessoas e suas estórias. Afinal, o Antropoceno não está aí, forçando-nos a lembrar que somos parte inevitável da paisagem: nós-cientistas, nós-professores, nós-alunos, nós-comunidade? Trata-se, no fim de tudo, de sustentar uma ideia de cidadania universal, colocando a “eficiência” a serviço de uma causa final que contempla não apenas a eficácia, mas também a equidade.
(A quem tenha chegado até aqui e se interesse pelo tema, a “Carta de Fundação e Estatuto” da UFSB é uma verdadeira aula de filosofia, que se diz kantiana e aristotélica, mas que a mim não me engana, porque há nela uma alegria nietzschiana muito evidente, como se filosofar só fosse possível quando se dança: http://ufsb.edu.br/wp-content/uploads/2015/06/Carta-e-Estatuto.pdf.)
Teia, novas epistemologias, rede: todas expressões correntes, nos corredores da UFSB, onde há algo no ar… Mas não é só lá, é claro. A equidade, as propostas de currículos integrados e a mobilidade social, assim como o enfrentamento vigoroso da questão das cotas, vão aos poucos se impondo à agenda de muitas universidades. Por paradoxal que possa parecer, é possível que estejamos diante de uma pequena revolução em curso, justamente agora que o país deu essa guinada estranha para a direita. É mesmo de se imaginar que o Brasil esteja suspenso, e que os dilemas e os enormes desafios enfrentados pela UFSB sejam uma espécie de laboratório do que está por vir.
Mas virá algo novo, do meio da crise mais acirrada? Dá vontade de responder, de chofre, com o verso barroco do poeta: virá que eu vi. E será lá na Bahia.