Conexão. Com a terra, com o território, com o outro, com a luta. Essa palavra e seus múltiplos sentidos atravessaram a mesa-redonda “Bem-viver na Perspectiva dos Povos Indígenas e Quilombolas”, atividade conjunta dos grupos temáticos Saúde Indígena e Racismo e Saúde proposta ao 8º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde e realizada no domingo, 29 de setembro, na Tenda Palmira Lopes, no campus da UFPB.
“Convido todos e todas a se sentarem no chão, em roda e, antes de começar que a gente entre em conexão cada um com seus deuses e ancestrais, com a terra abaixo desse tablado, com esse território” disse Cristiane Julião Pankararu, doutoranda do Museu Nacional/UFRJ, articulando o exercício do bem-viver com as lutas sociais e, principalmente, as do meio ambiente.
“É com equilíbrio que vamos garantir o bem-viver e equidade em saúde. Mas isso só será possível para todos quando tivermos água limpa e comida sem agrotóxico” disse ela antes de apresentar os demais participantes da mesa, irmãos e parentes que falariam de suas formas de ser e estar no mundo.
O primeiro a fazer uso da palavra foi André Fernando, vice-presidente da Associação Indígena da Bacia do Içana (OIBI), do Amazonas. O líder Baniwa abordou com o bem-viver como consciência e prática para a gestão de conhecimentos interculturais dos povos indígenas.
Logo no início da sua fala, demarcou o lugar do debate como fruto de avanços das lutas dos povos indígenas e do tardio, mas necessário reconhecimento desses saberes. “Para nós, o bem-viver é como um mantra na vida de cada Baniwa. Hoje eu farei o melhor para me sentir bem e, assim, vou ajudar os outros” expôs o líder.
O bem-viver é central também para o exercício de coletividade e consta no conjunto de princípios que rege a associação por ele liderada. “Nesse sentido, o bem-viver é um modo de organizar as atividades e decisões para alcançar objetivos comuns. Nós somos o que nós queremos, e isso está em mim, em você, em nós”.
Bem-viver como exercício de coletividade: Para André Baniwa, o exercício do bem-viver potencializa o olhar coletivo e mostra as falhas do controle social e da fragmentação das ações e serviços de saúde pública, tanto nos distritos especiais de saúde indígena como no SUS em geral. “Apesar da medicina tradicional ter seu destaque, essas profissões não sabem o que não é regra nos seus conselhos, não sabem dialogar para o rompimento desse isolamento, que não abraça a nossa cultura” ressaltou a liderança, que encerrou sua participação apresentando a Casa da Pimenta, projeto que emprega o conhecimento Baniwa para promover interações culturais e falar de seu povo por meio da gastronomia e da inovação social.
“O que tiramos dos produtos produzidos não é o que a gente vende, não é o que a gente cobra. É o que a gente entrega de coração. Para nós isso não é uma troca, pois na troca você perde o que dá para o outro. Então, para os Baniwa, a gente sempre compartilha” concluiu André.
Vindo do leste de Minas Gerais, Jesus Rosário Araújo, presidente da Federação Quilombola do MG, iniciou sua participação com uma cantiga tradicional “Vou-me embora/Vou-me embora/Que chegou a hora/Saravá Deus Pai/E nossa senhora”.
Numa fala que pontuou a história da escravidão do país ele destacou a ligação de indígenas e negros na constituição dos inúmeros quilombos que emergiram desde o Brasil colônia. “Nós, irmãos e parentes, conseguimos produzir modos de vida durante séculos. A resistência que praticamos não é de agora; resistimos nas formas de ser, de viver e de fazer, apesar das adversidades, que não foram nem são poucas” apontou Jesus Rosário, afirmando as coletividades e práticas quilombolas de bem-viver como instrumento frente à política de miscigenação, baseada no estupro e no extermínio dos povos trazidos da África.
Bem-viver como exercício da ancestralidade: Para o líder quilombola, somente a partir da Constituição Federal de 1988 que negros e negras passaram de fato a serem sujeitos de direitos. No entanto, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) só viria a ser instituída 20 anos depois, por meio da Portaria GM/MS nº 992, de 13 de maio de 2009; e, ainda assim, com uma grande limitação, marcada por uma visão biomédica que não inclui benzedeiras, parteiras e raizeiras como agentes de saúde.
“Não dá para a gente discutir saúde sem discutir religião, devoção, espiritualidade. Pois quando vem um profissional da saúde da família de fora da comunidade ele entende apenas do atendimento da doença, e não da saúde. Ele não respeita o tempo de compreender a natureza e o entendimento que nós fazemos parte dela. Quando vem gente de fora, eles matam as nossas formas de saúde e desconsideram nossas mães, irmãs e avós benzedeiras, parteiras e raizeiras. Para nós isso é o bem-viver e precisa ser respeitado” ressaltou.
O respeito às agentes tradicionais de saúde também esteve nas contribuições de Joziléia Daniza Jagso Kaingang. Ela é coordenadora pedagógica da Licenciatura Intercultural Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da mesma instituição, credenciais não menos importantes do que ser neta de parteira e filha de remedeira. “O território da UFSC é meu, não só como pesquisadora, mas também porque meu povo e eu já estávamos lá a muito tempo”.
Bem-viver como exercício da partilha e do território: Os Kaingang, terceiro maior povo indígena no Brasil, encontram-se espalhados pelo sul do Brasil, vivendo à margem da sociedade, nas beiras das estradas. Para Joziléia, não se pode falar em bem-viver enquanto as crianças Kaingang continuarem morrendo de diarreia por falta de atendimento e o direito à terra e ao território Kaingang não for respeitado.
“Para nós, as crianças são um retorno dos nossos antepassados. Para nós, a terra não é só um espaço para levantar uma casa, mas onde vivem os espíritos, é onde o fogo aceso ilumina o mundo dos mortos” falou a pesquisadora indígena.
O respeito ao tempo da natureza e das coisas, o reencantamento da vida e do conhecimento pelas memórias, tradições e cosmogonias devem ser centrais na relação científica e política com os povos originários e vistos com respeito, para além de uma antiga visão folclórica.
“Entendemos o território enquanto lugar de vida, de gerar, gestar, parir, crescer, florescer e reiniciar continuamente o ciclo da vida, que nada mais é uma comunhão entre os que vivem, humanos e não-humanos, no mesmo ambiente” disse Joziléia, destacando que o conceito de Bem-Viver do equatoriano Alberto Acosta bebe diretamente na tradição indígena andina e brasileira: sumak kawsay, na língua Quéchua; suma qamaña, na língua aymara; Teko Porã em Guarani; e Nhanderekó, do Guarani Mbya.
Em sua conclusão, Joziléia ressaltou que as práticas colaborativas entre pesquisadores e as comunidades indígenas precisam ter um compromisso de retorno, da forma que for possível e sempre acordada com a comunidade em questão, seja por meio de um vídeo, de uma fossa asséptica ou outra necessidade. Frisou também a centralidade da valorização dos saberes e práticas produzidos pelos pesquisadores e pesquisas indígenas.
“Não vamos retroceder; não vamos perder o pouco que conquistamos nessas últimas décadas. Nós indígenas vamos liderar essa resistência pelo direito à vida com os demais irmãos e parentes, tomando por todos nós, por cada um de nós, desfazendo a ideia do índio de vida boa, e produzindo a ideia do bem-viver. Para isso, não podemos continuar sendo tratados como índios, mas sim entendidos como nações; nossas produções não podem ser entendidas como artesanato, mas como arte, assim como nossas narrativas não são um folclore, mas sim cosmologias e modos de viver de povos autênticos e autônomos”.