Como um pêndulo, a construção do pensamento social oscila entre extremos – os mais variados – em confluência, cruzamentos e sobreposições. Seguir e escolher caminhos é uma das tarefas dos atores sociais, e não seria diferente no campo da Saúde e, em particular, da Saúde Mental. Por esse labirinto de conceitos, passando pelos alienistas e fisicalistas do século XVIII até os fetichistas das evidências do tempo atual, Benilton Bezerra Jr., professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj) e curador do programa Café Filosófico, produzido pela TV Cultura de São Paulo e CPFL Energia, conduzirá os participantes da palestra A Ciência do Mental, que será proferida na quarta-feira, 29 de julho, no Abrascão 2015.
Em entrevista, o pesquisador fala sobre seu olhar sobre a maúde mental, a Reforma Psiquiátrica, os desafios da formação dos recursos humanos na nova perspectiva da ação integrada das redes psicossocial com as da atenção primária, e da importância de uma revisão de conceitos que sustentaram nos últimos anos as teorias da vida subjetiva e as estratégias de tratamento dos distúrbios da vida psíquica, em especial o naturalismo – noção em torno da qual se organizou, desde o berço da psiquiatria, a oposição entre modelos biológicos e psicossociais da vida subjetiva e da psicopatologia.
Abrasco: Como o senhor avalia a experiência da Reforma Psiquiátrica no Brasil?
Benilton Bezerra Jr: A experiência brasileira de construção de uma rede de cuidados em Saúde Mental, como decorrência da Reforma que se iniciou nos anos 80, tem sido um processo extremamente rico e complexo, ímpar no mundo. A Reforma brasileira vem se dando no único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que tem um sistema público e gratuito. Diferentemente do que ocorreu em outros contextos, no Brasil a Reforma foi iniciada e liderada por profissionais inspirados em experiências internacionais diversas – a psiquiatria democrática italiana, mas também a psicoterapia institucional francesa, a psicanálise, em especial em sua versão lacaniana, e influenciados pelo pensamento de Foucault, Deleuze e Guattari. Em seu início, a Reforma esteve atrelada a movimentos de natureza política mais ampla, como a luta contra o regime militar – o que inscreveu a Reforma num processo muito mais amplo de reforma social e cultural. Tudo isso dá um colorido muito particular a esse processo. Clínica e política sempre estiveram e ainda estão fortemente imbricadas na experiência brasileira. O balanço mais preciso dessa herança, e a importância que ela pode ter para outros países está apenas começando a ser feita.
Abrasco: O que mudou do início da Reforma para os dias atuais?
Benilton Bezerra Jr: A Reforma se construiu com base no lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Mesmo que a ideia fosse a de desconstruir não só os muros dos asilos, mas toda uma cultura manicomial, o fato é que o seu centro de gravidade era a mudança radical no cuidado dos pacientes graves e crônicos, uma imensa população confinada em espaços dantescos. Com a integração das bandeiras da Reforma nas políticas de Saúde Mental esse desafio inicial foi sendo paulatinamente alcançado. O ano de 2006 marcou o momento em que os investimentos na rede de atenção psicossocial superou os gastos com despesas hospitalares, um passo decisivo nesse processo. Paralelamente a isso, o avanço, nos anos 2000, dos programas de Atenção Básica e de Saúde da Família ampliou imensamente o horizonte das políticas de Saúde mental. Os campos da Saúde mental e da atenção primária, que durante um tempo se situavam de certo modo como adjacentes, hoje têm o complexo e estimulante desafio de se integrarem. O horizonte da Reforma se expandiu, num movimento de duas vertentes: de um lado, no campo clínico, agora é preciso encontrar as melhores formas de cuidar não só dos pacientes graves e crônicos, mas também dos quadros menos graves e dos chamados transtornos mentais comuns; de outro, aos temas da loucura e da doença mental se agregam hoje os temas da Saúde mental como uma dimensão inerente a toda ação de saúde (e não apenas às ações de um campo especial como a psiquiatria), e a complexa questão da medicalização da vida.
Há ainda outras mudanças visíveis. Uma delas diz respeito aos recursos humanos. A maioria dos profissionais que ingressam hoje na rede de atenção psicossocial sequer era nascida quando a Reforma começou. A adesão ao ideário político, teórico e clínico que se encontrava na base do movimento evidentemente não poderia ser a mesma hoje, e esse fenômeno traz novas questões para a agenda atual da Reforma.
Abrasco: Então um dos principais desafios está na formação?
Benilton Bezerra Jr: Exatamente. Nos anos 80 e 90 os profissionais tendiam a buscar o campo Saúde Mental por se identificarem com um projeto que era não apenas assistencial, mas também político, epistemológico, cultural. Hoje esse quadro mudou. Nos programas de formação atuais é possível perceber uma diferença no perfil dos jovens profissionais, muito mais focados em seu aprimoramento técnico, e vindos de uma formação anterior em que as fontes de inspiração das gerações anteriores tiveram presença rarefeita. O desafio hoje é formar profissionais ao mesmo tempo competentes do ponto de vista técnico, e dotados da capacidade crítica que lhes permitirá articular as possibilidades cientificas e técnicas às exigências éticas do cuidado.
Abrasco: Como o senhor vê a produção científica da área?
Benilton Bezerra Jr: Essa produção vem se intensificando nos últimos anos, em quantidade e qualidade, mas há grandes desafios a serem enfrentados: maior integração entre a produção realizada nas universidades e a desenvolvida nos serviços; maior consistência na indução de pesquisas por parte das agências de fomento, visando áreas estratégicas como a avaliação de serviços e procedimentos; esforço no sentido de inserir a produção e a circulação do conhecimento numa escala internacional, permitindo uma maior interlocução e aprendizado mútuo com as experiências de outros países.
Abrasco: O que o senhor abordará na palestra A Ciência do Mental?
Benilton Bezerra Jr: Na história da psiquiatria, o naturalismo ocupou desde sempre um lugar central, servindo, de certo modo, como um balizador das concepções acerca da doença mental, do sujeito e da ordenação da vida psíquica. No início do século XIX, quando a psiquiatria começava a se firmar como uma especialidade médica, dois modelos básicos se opunham, o psicossocial, presente no alienismo, de Tuke, Pinel e Esquirol, e o somático, base do organicismo fisicalista de Bayle, Fournier e Griesinger. Desde então, esses dois modelos básicos se alternaram na busca de hegemonia epistemológica, teórico-clínica e política no universo psiquiátrico. No final do século XIX, o fisicalismo era hegemônico. Na primeira metade do século XX, e até pouco depois da II Guerra Mundial, essa hegemonia foi fortemente contestada, por influência da fenomenologia e da psicanálise. Com o surgimentos dos psicofármacos nos anos 50, e a reviravolta provocada em 1980 pela aparição do DSM III, e o extraordinário avanço das ciências da vida e das tecnologias de visualização cerebral nos anos 90, a biologia voltou a se tornar extremamente influente no campo. Hoje, grosso modo, a psiquiatria biológica concentra sua influência nos ambientes universitários e de pesquisa acadêmica, enquanto a psiquiatria de orientação psicossocial (que inclui a abordagem biológica, mas a associa às perspectivas políticas, culturais e teóricas indispensáveis aos modelos psicossociais) se encontra mais fortemente instalada nos serviços da rede de atenção à Saúde Mental.
Ora, um dos maiores desafios que temos nesse inicio de século é justamente rever as bases epistemológicas, teóricas, conceituais que sustentam essa oposição entre o biológico e o psicossocial na esfera da experiência subjetiva e da psicopatologia. Uma abordagem mais eficaz de boa parte dos problemas mais complicados que temos diante de nós exigem uma maior clareza quanto a isso. Na palestra vou procurar traçar as origens históricas dessa oposição, abordando a construção da divisão entre ciências da natureza e ciências humanas no fim do século XIX, e discutindo como, a partir não só das críticas externas à biologia, mas também (e talvez sobretudo) a partir das próprias ciências da natureza atuais, se torna possível revisar profundamente a noção de naturalismo, e a partir reconfigurar de modo muito mais interessante os complexos problemas (entre eles as depressões, o autismo, etc) com os quais a psiquiatria e o campo da Saúde Mental têm que se haver tanto no plano da política quanto da assistência. Afinal, é preciso dizer hoje com todas as letras: toda psiquiatria é biológica e, para atingir seus objetivos, toda psiquiatria precisa ser psicossocial. Espero poder oferecer argumentos para justificar isso.
Abrasco: Como o senhor compreende e vê hoje o debate sobre a universalidade do SUS, tema do congresso?
Benilton Bezerra Jr: A universalidade é uma bandeira crucial para o futuro do SUS e da Saúde no Brasil. Há poucos países que adotaram os sistemas universais de saúde, que surgiram como parte da reação ao horror deixado pelas duas grandes guerras mundiais, no esteio do impulso dado às ideias de reforma social profunda pleiteada por socialistas e social-democratas europeus. Por trás da universalidade dos serviços de saúde há uma ideia de sociedade, há uma visão de mundo, e não apenas um projeto técnico-administrativo. Por isso a defesa do SUS é fundamental, num momento em que a ideia generosa de uma sociedade que busca ativamente equidade e justiça social como suas referências fundamentais sofre o assalto constante de um imaginário social que a faz parecer algo antiquado, ultrapassado e ineficiente. Precisamos confrontar esses assaltos não só com melhorias nos serviços e na qualidade da gestão e da avaliação, mas também com a reafirmação dos valores éticos e políticos que dão sentido e justificação para um sistema como o SUS. Esse é um embate técnico, por há o funcionamento do sistema apresenta problemas estruturais graves, mas é também político e ideológico, no sentido de que está articulado não só a perguntas do tipo “Como ser mais eficiente na gestão dos serviços públicos de saúde”, mas também a questões de fundo como “Que tipo de sociedade, que modelo de convivência humana, queremos construir para aqueles que virão de nós.
Confira no Abrascão 2015
Dia 29 de julho, quarta-feira
Das 14h às 16h
Palestra A Ciência do Mental
com Benilton Bezerra Junior – IMS/Uerj
Local: FCS – CS3 – A11
Assista a um trecho do programa Café Filosófico, no qual Benilton Bezerra Jr. fala sobre a formação do sujeito no mundo contemporâneo