Salvador Corrêa recebeu o diagnóstico de HIV aos 27 anos, após uma relação sexual. Não sabe se foi em um episódio em que não usou preservativo, ou em outro em que a camisinha estourou. Abatido, isolou-se da família e dos amigos. Resolveu, então, desabafar a angústia em seu blog, onde escrevia anonimamente como era carregar o estigma de uma “pessoa contaminada”.
— É um sentimento de solidão total, de carregar um segredo que não pode ser revelado porque há muito preconceito — revela Salvador, hoje com 34 anos. — Parece que você é o vírus. Que não pode mais tocar ou se aproximar de ninguém. Primeiro, sofri por ser homossexual. Depois, aparece este novo desafio.
A história de Salvador comoveu seus leitores, que o mostraram que, devido ao avanço dos tratamentos médicos, o medo de ver o rosto e o corpo transformados pelo HIV não condiz com a realidade. Salvador reuniu os textos em um e-book, “O segundo armário”, adaptado recentemente para uma peça teatral — uma nova temporada está prevista para abril, no Rio. Hoje, ele é ativista no combate ao vírus e identifica os jovens como o público mais carente de assistência.
De fato, o Boletim Epidemiológico HIV Aids 2018, divulgado pelo Ministério da Saúde, mostra como a detecção do vírus entre os jovens aumentou em apenas dez anos. Entre 2007 e 2017, a notificação de casos de HIV de pessoas com 15 a 24 anos aumentou aproximadamente 700%. Especialistas acreditam que a explosão de ocorrências se deve à maior disponibilidade de testes e a campanhas de conscientização cada vez mais acanhadas:
— O jovem não usa mais camisinha, mas o discurso não deve ser restrito a isso. É fato que as campanhas e o debate têm sido silenciados por forças conservadoras.
Diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Richard Parker acredita que o país vive uma epidemia de HIV. Nos últimos anos, campanhas voltadas para os públicos mais vulneráveis à infecção pelo vírus, como transexuais e profissionais do sexo, provocaram protestos entre setores da sociedade.
— Não considero que as pessoas perderam medo, mas sim acesso à informação — avalia. — Desde 2012, as campanhas são cada vez menos explícitas e não direcionadas ao público que mais precisa de esclarecimentos.
Sem planejamento
Parker alerta que o panorama pode piorar este ano. A duas semanas do carnaval, o site do departamento do Ministério da Saúde responsável pela prevenção e controle de HIV/Aids não cita as ações especiais previstas para o feriado.
— Os ministros falam sobre necessidade de se respeitar a família brasileira e deixar o debate sobre a educação sexual para os pais. É a receita para o desastre — condena ele. — Nos anos 1990 e 2000, havia grandes mobilizações, investimentos e programas nacionais constantes. Hoje, nega-se o debate público, não há iniciativas como o combate à homofobia nas escolas.
Procurado pelo GLOBO, o Ministério da Saúde não forneceu informações sobre o investimento em campanhas contra o HIV para este ano.
Para Marcio Villard, coordenador geral do Grupo pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Pela Vidda), “um rapaz e uma moça de 16 ou 17 anos que se infectou não foi promíscuo nem relaxado”.
— No mundo em que vivemos, com tanta tecnologia e informação, às vezes um tema pode passar batido. Daí a necessidade de haver programas específicos para um público — sublinha. — A juventude não vivenciou o momento forte da epidemia, não tem percepção sobre o risco, não conhece métodos de prevenção, como a Profilaxia Pré-Exposição ao HIV (PrEP). As escolas deixaram de falar sobre saúde e doenças sexualmente transmissíveis.
Antes um modelo internacional, ao promover gratuitamente a distribuição de drogas retrovirais no SUS, o Brasil vem perdendo prestígio na luta contra o HIV.
— Em todo o mundo, o número de casos caiu 11%, segundo um relatório do Programa das Nações Unidas sobre HIV/Aids de 2017. No Brasil, cresceu 3% — lamenta Villard. — A sociedade voltou a ter a percepção de que HIV é coisa de gay, prostituta e drogado.
A pediatra e infectologista Maria Letícia Cruz ressalta que o diagnóstico e a adesão ao tratamento são ainda mais problemáticos entre adolescentes.
— Os jovens têm um comportamento que, de alguma forma, os coloca em situação de maior risco — destaca Maria Letícia, que é doutora em saúde coletiva pela Fiocruz. — É uma faixa etária que não viu a epidemia da década de 1980. Já nasceram em uma época em que o HIV tem tratamento, então não têm muita noção da gravidade dos problemas que a infecção pelo vírus pode causar. São o pior grupo de adesão ao tratamento. Aceitar o diagnóstico nem sempre é uma coisa fácil.
(Reportagem publicada no jornal O Globo em 17 de fevereiro de 2019)