A harmonização global das regras sobre propriedade intelectual realizada em 1996 mediante os acordos TRIPS inaugurou os trabalhos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa harmonização, à qual o Brasil aderiu, atendeu quase exclusivamente os interesses dos países detentores da maioria das patentes no mundo. Algumas brechas, entretanto, foram conquistadas pelos países emergentes, sendo a principal delas a concessão de um período de até 10 anos para que as indústrias desses países pudessem adaptar-se às novas regras.
Diferentemente da Índia, que aproveitou integralmente esse período, e da China, que apenas recentemente ingressou na OMC, o Brasil apressou-se em aprovar a sua nova lei de propriedade intelectual em 1996 e, além disso, incluiu na mesma, restrições que iam além dos dispositivos TRIPS. A principal delas foi a inclusão de um parágrafo ao artigo 40 da lei no qual é estabelecido um ”piso” de 10 anos para a vigência de uma patente após a sua concessão, o que faz com que muitas patentes possam ter sua eficácia além dos 20 anos regulamentares. Como a agência reguladora brasileira, o INPI, costuma demorar muitos anos para conceder uma patente, há uma prorrogação do monopólio que impede a entrada no mercado de produtos genéricos, muitos deles essenciais para a população.
Em boa hora, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional esse parágrafo único do artigo 40, sob o argumento de que a ineficiência de um órgão de Estado (a demora do exame pelo INPI) não deveria ser corrigida pela penalização do direito à concorrência, cujos sujeitos são empresas públicas e, principalmente, privadas. É, portanto, espantosa a proposta contida em emenda à MP 1040/2021 que propõe a restauração da eficácia desse parágrafo na lei de patentes. Também em boa hora, o relator da MP, o deputado Marco Bertaiolli rejeitou a emenda, mantendo a decisão do STF. Entretanto, é necessário que o Senado Federal mantenha essa rejeição. A aplicação do parágrafo único já produziu um prejuízo que chega a mais de R$ 2 bilhões ao SUS que, em decorrência desse dispositivo se viu impedido de adquirir medicamentos genéricos essenciais à saúde da população. No debate da MP no Senado Federal é essencial à saúde pública a manutenção da decisão do STF, inclusive no que diz respeito à retroatividade no cancelamento de extensões de patentes já concedidas no caso de medicamentos.
A década de 1990 vivenciou, em todo o mundo, uma explosão da epidemia de HIV-AIDS bem como o aparecimento dos primeiros antirretrovirais que, em decorrência do regime TRIPS, tiveram importantes restrições de acesso. Em 2001, esse fato terminou por gerar uma decisão, também no âmbito da OMC, de flexibilizar alguns dispositivos de TRIPS. No debate com vistas à adequação da nossa lei de patentes a essas flexibilidades, o Congresso Nacional introduziu naquela lei um dispositivo que atribuiu à agência sanitária brasileira – a ANVISA – a prerrogativa de anuir previamente a patenteabilidade de um produto, vis a vis sua relevância no campo da saúde pública (Lei nº 10.196, de 2001). Esse dispositivo foi modificado durante o governo Temer e está sendo também objeto de proposta de extinção no debate da mesma MP. O relator na Câmara dos Deputados se opôs a essa emenda, que entendemos deva ser também rejeitada no Senado Federal.
Rio de Janeiro, 24 de junho de 2021
Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco