A péssima gestão da pandemia de Covid-19 e o moralismo do governo Jair Bolsonaro resultaram no cancelamento da prevenção contra a Aids no Brasil.
Nesta quarta-feira (1º), Dia Mundial de Luta contra a Aids, é preciso lembrar que houve grande queda na realização de testes de HIV, o que faz acumular casos não diagnosticados, aumentar a transmissão do vírus e o número de pessoas que deixam de iniciar o tratamento.
Em 2021, até setembro, a distribuição de preservativos pelo Ministério da Saúde não chegava à metade das 468 milhões de camisinhas ofertadas pelo SUS em 2019. Em 2020, foram distribuídos 115 milhões de preservativos a menos na comparação com o ano anterior.
Apenas 27 mil pessoas no Brasil estão hoje usando a profilaxia pré-exposição (PrEP), que consiste na tomada diária de um comprimido que evita a infecção pelo HIV.
Há boicote na ampliação do acesso à PrEP, diferentemente do que acontece nos EUA, onde mais de 200 mil pessoas já usaram o medicamento preventivo, e em países do continente africano, como Zâmbia —com 168 mil beneficiados—, África do Sul (164 mil) e Nigéria (124 mil).
Antes da Covid, as campanhas de prevenção em Aids do atual governo federal já eram raras e insípidas. Peças e conteúdos dirigidos a gays, profissionais do sexo, adolescentes e jovens, entre outras populações mais vulneráveis ao HIV, foram banidas.
No Ministério da Saúde, o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis tirou a Aids do nome, congestionou a área técnica e ficou refém de fundamentalismos.
Em 2020, ao comentar a bizarra campanha da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, de incentivo à abstinência sexual entre jovens, Bolsonaro afirmou que uma pessoa HIV positiva representa “uma despesa para todos no Brasil”.
Recentemente, o presidente também disseminou notícia falsa que associou a vacina contra a Covid à Aids.
O Ministério Público Federal investiga denúncia de que o governo pretende excluir do Censo de 2022 questões sobre orientação sexual e identidade de gênero, imprescindíveis para traçar políticas de prevenção do HIV.
Nesta efeméride, os dados sobre Aids no Brasil serão festejados em boletins oficiais. Por banalização ou indiferença cínica, passarão despercebidas as mais de 30 mortes e 100 novos casos de HIV registrados a cada dia no país.
Quarenta anos depois do início da epidemia da Aids, a tragédia sanitária da Covid mostrou que vidas afetadas ou perdidas devem ser publicamente contabilizadas para que não se tornem estatísticas intangíveis.
Por que tanta gente não alcança a prevenção e a testagem, não inicia ou não adere ao tratamento, e continua a morrer de doenças oportunistas no Brasil? Essa questão é desconcertante para o país que já foi modelo mundial no combate à Aids.
Tratável, a Aids ainda não tem cura, e a natureza do HIV é altamente variável, o que o difere do Sars-CoV-2, dificultando o desenvolvimento de vacinas.
Mas os testes rápidos, baratos e fabricados em laboratórios públicos estão aí, disponíveis. Há novos meios para evitar que alguém HIV negativo, caso exposto a maior risco, seja infectado. E o SUS distribui todos os medicamentos necessários, de modo que a pessoa com HIV possa viver normalmente, com boa saúde e sem transmitir o vírus a ninguém.
Além disso, há novidades que podem simplificar o tratamento.
A Anvisa aprovou a junção de antirretrovirais em uma só capsula de dose única diária, enquanto a FDA, dos Estados Unidos, liberou o primeiro medicamento injetável contra o HIV, aplicado apenas uma vez ao mês.
Feito uma pororoca, a piora da qualidade de programas e de serviços do SUS que cuidam de HIV, responsabilidade de municípios e estados, encontrou-se com as violações aos direitos humanos orquestradas pelo governo Bolsonaro.
Quem lança o SUS à míngua, quem nega a ciência, quem semeia racismo e homofobia, discrimina mulheres e exclui da prevenção e da assistência em saúde a superação das desigualdades, colhe adoecimento e mortes que poderiam ser evitadas.
O Brasil se distanciou da meta global de vencer a Aids até 2030 e pode estar se aproximando do ponto crítico para uma nova onda de infecções por HIV.
A hora, portanto, é de impedir a derrocada.
* Mário Scheffer é professor do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e associado Abrasco; Caio Rosenthal é médico infectologista. Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo – clique e acesse a versão original