O abrasquiano Carlos Augusto Monteiro, professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e coordenador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS/USP), conversou com Paulo Saldiva, médico, pesquisador e apresentador do programa “Entrevista”, no canal Futura, sobre alimentos ultraprocessados. A nova temporada do Entrevista é sobre Ciência e Saúde e apresenta histórias de 13 brasileiros que se dedicam à saúde pública do Brasil. A Comunicação da Abrasco decupou os principais trechos da entrevista.
Relação antiga e complexa: alimentação e saúde
O especialista explicou que a principal área de investigação do NUPENS, que coordena, é a relação entre a alimentação e as doenças crônicas – como doenças cardiovasculares, vários tipos de câncer e diabetes. Antes, o paradigma da relação entre saúde e alimentação era muito focado em nutrientes – açúcar, sódio, gordura saturada, gordura trans. E esses nutrientes são mesmo uma parte da explicação desta associação direta. Entretanto, a atual linha de pesquisa é identificar quais alimentos – e quais as combinações entre os alimentos – que produzem doença e quais produzem saúde:
“No passado era mais simples entender: geralmente você tinha um nutriente escasso e um sintoma. Escoburto [por exemplo] era deficiência de vitamina C. O tratamento era simples: levando laranjas para consumo nas viagens marítimas. Bócio [ausência de iodo], coloca iodo no sal. Doenças crônicas são mais complexas, é além de nutrientes. Os alimentos são fontes de nutrientes, mas são também fontes de uma série de compostos químicos que não são nutrientes e afetam nossa saúde”, explica.
Pacotes inteligentes e matriz alimentar
Aprofundando, Carlos explica a matriz alimentar que tem “pacotes inteligentes” de nutrientes e não nutrientes, só funcionando perfeitamente juntos. É o caso da absorção de anti-oxidantes, substâncias extremamente importantes presentes nos alimentos integrais – que são “não nutrientes”: ” Ácidos fenólicos e fibra alimentar estão juntos nos alimentos. Significa que a gente vai absorver o ácido fenólico de uma maneira que se ele não estiver ligado na fibra ele é destruído no estômago. O composto fenólico ligado à fibra vai até o cólon, a bactéria digere a fibra, libera o ácido fenólico que [somente assim] atua como anti-oxidante. Se você toma esse ácido como comprimido ele atua como oxidante [efeito contrário]”.
Por isto é tão importante consumir os alimentos de verdade, em sua forma natural, porque eles são muito difíceis – até “impossíveis” – de imitação. A combinação de nutrientes e não nutrientes nos alimentos, a combinação entre alimentos nas refeições, são elaboradas pela natureza para atenderem as necessidades das espécies que fornecem os alimentos (as plantas, por exemplo) e as espécies que consumirão estes alimentos. Os alimentos ultraprocessados são a destruição deste equilíbrio:
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“O que acontece com o ultraprocessamento de alimentos é isso: rompe-se a matriz alimentar buscando extrair dos alimentos gorduras, açúcar, amido e recombinar essas substâncias na forma de produtos que imitam os alimentos e refeições de verdade. Embora se pareçam com os alimentos de verdade, ou com as refeições de verdade, estão destituídos dessa inteligência que a natureza foi desenvolvendo ao longo do tempo. Na prática, o que os estudos epidemiológicos mostram, é que quando você se alimenta desses produtos que não tem a matriz alimentar você sofre as consequências disso: pode ser a diabetes, pode ser obesidade, doença cardiovascular e alguns tipos de câncer”.
Ultraprocessados simulam gosto, aroma, cor e enganam o organismo
Uma das causas da obesidade é o estímulo de alimentos falsos. A epidemia crescente no Brasil é, segundo o professor, uma falência no sistema de controlar a balança energética. Ou seja: a falta de discernimento para entender quantas calorias são realmente necessárias:
“O ultraprocessamento desconecta a sensação, o sabor, do conteúdo. As pessoas gostam de carne, cogumelo porque tem proteína. A proteína transmite um gosto que as pessoas apreciam muito. E aí a indústria de ultraprocessados pega um salgadinho, que é basicamente de amido e sal, coloca mono glutamato de sódio – e aquilo tem sabor de picanha. Mas desconectou do conteúdo, a fonte de proteína é zero. Só que [por causa da sensação] o organismo acha que aquilo é uma fonte importante de proteína. Isso explica o consumo excessivo de ultraprocessados. Eles simulam características sensoriais de textura, de cor, aroma – para o organismo passa como uma coisa muito positiva, como se ali você tivesse os nutrientes que precisa. E, você tem os nutrientes que você não precisa, como gordura e sódio.
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Há uns 40,50 anos a humanidade resolveu fazer um experimento: vamos ver se é possível – em vez de se alimentar de alimento de verdade, se alimentar de ultraprocessados. Não funcionou”.