Com o epiteto “Zika Detective”, Celina Turchi foi apresentada ao mundo pela prestigiosa revista Nature na lista dos dez principais cientistas do ano de 2016. No entanto, a comunidade científica brasileira, em especial da Saúde Coletiva e da Epidemiologia, já conhece há bastante tempo o trabalho e as contribuições desta pesquisadora nas investigações em doenças infecciosas. Com uma carreira de mais de duas décadas na Universidade Federal de Goiás (UFG) e passagens como professora visitante em diversas instituições nacionais e internacionais, Celina atualmente é pesquisadora visitante no Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz) e bolsista produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) por suas contribuições no estudo de doenças como a Dengue, as Hepatites, e a Hanseníase.
A junção da qualidade acadêmica e científica e a localização estratégica puseram na trajetória de Celina um desafio que nem nos piores pesadelos ela teria pensado ser possível. No início de 2015, um quadro sintomático não identificado atacou boa parte da população de baixa renda em municípios da região Nordeste, como Camaçari (BA), Campina Grande (PB), Natal (RN), Recife (PE), entre tantos outros, espalhando-se depois para outras regiões. Meses depois, uma série de nascimentos de bebês com baixo desenvolvimento da caixa craniana e outros problemas neurológicos abalou o país. A Zika entrou para o debate público nacional já com o alerta vermelho, levando à concentração de esforços e ao envolvimento de uma série de pesquisadores, médicos e estudantes.
Coube a Celina a coordenação de parte significativa desse trabalho. A convite do Ministério da Saúde (MS), ela formou o Grupo de Pesquisa da Epidemia da Microcefalia (MERG), composto por pesquisadores de diversos centros: CPqAM; UFPE; Universidade de Pernambuco (UPE); Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP); Associação de Apoio à Criança Deficiente (AACD); Fundação Altino Ventura; Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, e London School of Hygiene and Tropical Medicine, além de apoios técnicos do MS e Organização Pan-americana de Saúde (OPAS/OMS).
“Destaco o rigor em produzir evidências, utilizando-se de protocolos de pesquisa metodologicamente bem desenhados e com os requisitos da ética em pesquisa”, conclui Celina sobre o feito do estudo de caso-controle ter mostrado a força da associação entre o vírus Zika e a microcefalia, agora oficialmente descrita como Síndrome de Zika Congênita. O estudo central e seus componentes foram publicados nos periódicos New England Journal of Medicine, The Lancet e American Journal of Public Health, passos fundamentais que corroboraram a indicação de Celina à lista da Nature. Junto com o reconhecimento da comunidade científica internacional, veio um grande número de entrevistas. “Confesso que não contei quantas foram. Poder esclarecer a população sobre as medidas de prevenção e de controle, as lacunas do conhecimento e a necessidade de continuidade das pesquisas são parte do nosso ofício de pesquisador”.
Ela mesmo destaca que ainda há muitas lacunas a serem respondidas, como a intensidade de transmissão do vírus nas cidades, o prazo de imunidade, a interação com outros vírus, entre outras. Coortes nacionais e em colaboração com a União Europeia vão acompanhar os neonatos para descrever os espectros da infecção congênita. No entanto, Celina ressalta a necessidade de um olhar específico para a assistência dessas crianças e de suas mães, um papel que deve ser assumido pelo SUS. “São crianças com problemas neurológicos, oftálmicos, audiológicos, gástricos, o que representa um grande desafio para o SUS e exige assistência especializada”, diz a associada da Abrasco, que reforça também o papel do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, que acontece de 07 a 11 de outubro, em Florianópolis (SC), no cenário da saúde pública brasileira. “Relacionar formação, pesquisa e intervenção em epidemiologia no e para o SUS é mais que um título ao congresso. É fazer do evento um espaço de resistência dos princípios do SUS, bem ao estilo da Abrasco”. Leia a entrevista na íntegra:
Abrasco: Após o anúncio da Nature, quantas entrevistas você concedeu?
Celina Turchi: Confesso que não contei. Foram muitas entrevistas em todas as mídias, tanto para veículos nacionais como regionais. Atender às solicitações é uma oportunidade única para divulgar os resultados e as informações em saúde. Poder esclarecer a população sobre as medidas de prevenção e de controle, as lacunas do conhecimento e a necessidade de continuidade das pesquisas são parte do nosso ofício de pesquisador.
Abrasco: Chamou a atenção o registro brincalhão e coloquial que a Nature utilizou para identificar os indicados. Acredita que esse tratamento aproxima a sociedade dos cientistas?
Celina Turchi: Foi realmente um tom divertido em se tratando de uma revista científica que utiliza linguagem acadêmica. Parece sim ser uma tentativa de facilitar o entendimento da população sobre o papel dos pesquisadores em epidemiologia, usando as palavras “atentado à saúde de grandes proporções; buscar pistas, álibis, cúmplices…” Daí a palavra detetive na “pesquisa epidemiológica”. Mas, mais do que isso, gostei de reconhecer na lista não só pesquisadores no sentindo mais tradicional da palavra, mais também jovens que inovaram em seus campos de conhecimento. (A lista inclui Elena Long, que chamou a atenção para a discriminação e os obstáculos enfrentados por cientistas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros, e Alexandra Elbakyan, cujo site Sci-Hub desafiou grandes editoras científicas ao disponibilizar gratuitamente mais de 60 milhões de artigos científicos.)
Abrasco: Passado o primeiro impacto e as primeiras entrevistas, como você vê o interesse da imprensa nacional pela ciência?
Celina Turchi: A imprensa sempre se mobiliza para divulgar situações de calamidade pública e a epidemia de microcefalia representou e ainda representa um grande impacto na população. O conhecimento é importante e a divulgação desse conhecimento para a população é fundamental para enfrentamento da emergência e para as medidas de prevenção e controle. Houve sim muito interesse nos desdobramentos das pesquisas de Zika em geral. Gostaria de enfatizar que o destaque foi para a capacidade da comunidade científica brasileira alinhada ao Ministério da Saúde/Secretarias de Saúde em dar respostas oportunas e consistentes. Mas também gostaria que ficasse registrado a preocupação quanto às limitações em investimentos em pesquisa e em formação de recursos humanos que se anunciam.
Abrasco: Nas entrevistas, você destacou o trabalho de equipe como o central para a condução do estudo. Quais avanços que o desenho multidisciplinar do Grupo de Pesquisa da Epidemia da Microcefalia (MERG) trouxe de fato para os resultados obtidos?
Celina Turchi: Com a formação do MERG, foi possível manter uma estrutura de pesquisa formal, conduzida de forma oportuna, dentro de um momento de crise de saúde pública. Entre as características do trabalho, destaco o rigor em produzir evidências, utilizando-se de protocolos de pesquisa metodologicamente bem desenhados e com os requisitos da ética em pesquisa. Do ponto de vista metodológico e da pesquisa inicial, o estudo caso-controle mostrou a força de associação entre o vírus Zika e a microcefalia. Esse projeto inicial permitiu a aproximação com pesquisadores de outras áreas (pesquisa quantitativa e qualitativa) para elaborar novos projetos de pesquisa sobre o impacto socioeconômico da epidemia e também uma abordagem social para buscar entender como esses eventos afetam particularmente a vida das mulheres.
Abrasco: Como entende e avalia o processo de internacionalização da ciência brasileira?
Celina Turchi: Hoje é difícil falar de ciência brasileira. Os intercâmbios científicos são incentivados desde o início da formação dos pesquisadores e são importantes para uma melhor elaboração e condução das pesquisas. O que me surpreendeu positivamente durante a epidemia foi a intensa colaboração e a ética entre os grupos de pesquisadores. Reconheço a participação da London School of Hygiene and Tropical Medicine como integrante dos projetos de pesquisa que vem sendo conduzidos no Brasil.
Abrasco: Que desafios o enfrentamento ao quadro da epidemia de microcefalia trouxe aos seus conhecimentos?
Celina Turchi: Desde os primeiros meses da epidemia em 2015, havia a percepção da gravidade dos eventos de saúde o do enorme impacto social. Inicialmente o desconhecimento sobre a causa da microcefalia gerou muitas hipóteses. Do ponto de vista epidemiológico era a necessidade de gerar evidências rapidamente durante uma crise na saúde pública de dimensões nacional e internacional. Houve um esforço de articulação intensa com os diferentes grupos de profissionais de saúde e pesquisadores para melhor aproveitar as competências sem duplicar atividades de pesquisa ou de atendimento. Um trabalho intenso em meio a uma avalanche de demandas técnicas por resultados rápidos.
Abrasco: Quais são as principais questões ainda não esclarecidas na epidemia da microcefalia?
Celina Turchi: Estamos ainda no início dos descobrimentos. A intensidade de transmissão do vírus Zika nas cidades, imunidade duradoura ou temporária, interação com outros vírus, espectros dos casos de Síndrome de Zika Congênita, etc. Hoje reconhece-se que a microcefalia é uma das manifestações graves do que atualmente denominamos Síndrome da Zika Congênita. As gestantes das áreas mais acometidas pelo vírus da Zika vêm sendo monitoradas para melhor conhecer em que momento da infecção ocorrem os danos nos fetos. Há coortes em andamento que visam o acompanhamento das crianças nascidas de mães com infecção que podem dar resposta sobre o grau de acometimento dessas crianças.
Abrasco: De tantas dificuldades e limitações, quais você destaca como prioridade para o SUS poder ter maior capacidade resolutiva na questão da Zika e da Síndrome da Zika Congênita?
Celina Turchi: Além da alta prevalência da microcefalia, observa-se uma ampla variedade de manifestações em crianças expostas ao vírus da Zika durante a gestação. Crianças com problemas neurológicos, oftálmicos, audiológicos, gástricos representam um grande desafio para o SUS. Exige assistência especializada, tecnologia de ponta, estimulação precoce, acompanhamento de rotina, que são uma sobrecarga para o SUS e que pode encolher ainda mais nos próximos anos…
Abrasco: O tema do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, a ser realizado de 07 a 11 de outubro, em Florianópolis, será “Epidemiologia em defesa do SUS: formação, pesquisa e intervenção”. Qual a importância do evento na formação dos epidemiologistas brasileiros?
Celina Turchi: A Abrasco sempre foi um fórum catalizador das discussões sobre políticas de saúde, política de pós-graduação, da universalização do atendimento à saúde e na construção de um conhecimento abrangente de saúde. Sou associada e tenho participado dos congressos. O último realizado em Goiânia [o 11º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva – “Abrascão 2015”] chamou minha atenção pelo grande número de participantes, pela diversidade dos temas e pela mobilização dos grupos sociais. Relacionar formação, pesquisa e intervenção em epidemiologia no e para o SUS é mais que um título ao congresso. É fazer do evento um espaço de resistência dos princípios do SUS, bem ao estilo da Abrasco. Gostei.