Confira abaixo artigo publicado originalmente no jornal O Globo, de 19 de dezembro de 2016, redigido por Paulo Amarante, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco – , sobre o cenário da Saúde Mental brasileira um ano após o movimento Fora Valencius. Clique aqui para ler na publicação original.
“Há um ano, a Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas do Ministério da Saúde estava ocupada por militantes da luta antimanicomial, usuários e funcionários do sistema público de saúde. O motivo era a insatisfação pela nomeação do coordenador de saúde mental absolutamente contrário às diretrizes da política nacional. No afã de construir apoio parlamentar para enfrentar o processo de impeachment, Dilma Rousseff nomeou para a pasta da Saúde Marcelo Castro, um deputado do PMDB piauiense que nomeou um ex-aluno seu para o cargo. Mas a questão era mais complexa: o coordenador nomeado havia sido o diretor clínico de uma das mais cruéis instituições manicomiais, a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi.
O fato de a Dr. Eiras ter sido fechada em 2012, após ação envolvendo o Ministério Público, já seria suficiente para contraindicar a nomeação do diretor clínico desta instituição. Mas o agravante é que fora um diretor atuante na defesa do modelo daquela instituição, procurando desacreditar as medidas e os profissionais que foram responsáveis pelo processo de intervenção.
Os ocupantes de Brasília eram ativistas da reforma psiquiátrica brasileira que, por conhecerem o interior, o cotidiano destas instituições, lutavam por sua extinção e substituição por um modelo comunitário, inclusivo e integrador. No Brasil foi constituído um vigoroso processo de transformação do modelo assistencial psiquiátrico, que passou a ser amplamente reconhecido por instituições e observadores internacionais.
A experiência brasileira passou a oferecer novas possibilidades de vida para as pessoas com diagnósticos psiquiátricos: dos cerca de 80 mil leitos existentes na virada dos anos 1970 para 1980, atualmente há menos de 30 mil. E, ao contrário do que argumentam as pessoas prejudicadas por tais mudanças, os pacientes que ocupariam estes leitos não foram abandonados nas ruas, ou deixados como sobrecarga às famílias. Foram e são ainda atendidos por centenas e milhares de novos serviços de atenção psicossocial, como os Centros de Atenção Psicossocial, onde os usuários são acompanhados cotidianamente, em regime aberto e inclusivo.
Dias após o Brasil perder Antonio Lancetti — defensor da luta antimanicomial e das ações de enfrentamento à dependência química, um argentino que escolheu o Brasil para lutar, mesmo enquanto combatia um agressivo câncer, pela população de rua acometida de doenças mentais —, é muito importante lembrar que a reforma psiquiátrica não se reduz à lei ou às portarias ministeriais. Constrói-se cotidianamente no fazer e criar permanente de novas relações de cuidado e solidariedade às pessoas em sofrimento. Muitos daqueles internos em hospitais psiquiátricos, em cujos prontuários se lia que eram incapazes, perigosos e irresponsáveis, são hoje cidadãos em defesa e exercício de seus direitos, inclusive como defensores da reforma psiquiátrica antimanicomial. E isto é fundamental.”