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‘Clima de impasse ou ‘em passo’?’ pergunta Paulo Henrique Martins

Maíra Mathias - EPSJV/Fiocruz

A crise brasileira não está descolada de uma crise mais ampla, que atinge o capitalismo global e o próprio modo de pensar e produzir conhecimento. A complicada trama de contradições que vai tecendo as primeiras décadas do século 21 substituem as velhas certezas das sociedades forjadas na tradição democrática liberal por novos impasses. Mas, longe de abraçar de vez a frustração, Paulo Henrique Martins, professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – a quem coube a conferência de abertura do 7º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde –, acredita que é o momento adverso pode abrir uma nova oportunidade histórica de reconciliação do homem com a natureza e consigo mesmo. “O impasse não existe. O impasse é só o desconhecido, o medo dos passos que a gente precisa dar. Ao invés de impasse a gente deveria falar ‘em passos’ para construir coletivamente novas subjetividades, um novo imaginário social”, afirmou ele, na manhã desta segunda-feira, dia 10 de outubro, para um público de centenas de pessoas que vieram a Cuiabá para o tradicional evento organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva que se estende até o dia 12 de outubro com a proposta de colocar o pensamento crítico a serviço da ação em saúde na (ad)diversidade.

Com essa encomenda, Paulo Henrique traçou um panorama que partiu da constatação de que a crise – brasileira, internacional – não é somente gerada pela desregulamentação econômica, mas também por uma desorganização generalizada da passagem de bastão do capitalismo moderno para um modo de produção capitalista mais concentrador e, principalmente, centrado na especulação financeira. “A crise no Brasil não tem caráter somente econômico, mas também político e moral. Não se trata de um fenômeno nacional e localizado, produzido por erros de gestão governamental no país. A crise é nacional, mas também transnacional, refletindo a desorganização do capitalismo moderno como um modo de produção dominante para dar lugar ao emergente capitalismo oligárquico predatório que financeiriza a economia na tentativa de evitar o seu próprio esgotamento”, avaliou.

Para o sociólogo, a ampliação da desigualdade social está desequilibrando dispositivos políticos e administrativos tradicionais usados pelo poder capitalista para justificar ideologicamente a economia de mercado como algo natural e fruto do progresso científico. Isso porque se o Estado democrático burguês tinha algumas ‘tarefas’ sociais – o paradigma do bem-estar social, por exemplo –, hoje as elites ou “oligarquias” que dominam o poder central têm outra agenda. “Como revela claramente o contexto brasileiro, agora se tenta cortar os recursos das políticas sociais e não se coloca em discussão a dívida pública, os juros em cima de juros sendo pagos. Essas questões não aparecem na mídia. Há um sistema de controle oligárquico que protege o sistema financeiro e o processo de acumulação rentista”, disse.

Com isso, o sociólogo acredita que está cada vez mais visível a degradação dos processos democráticos. “Temos por um lado o que se chama de democracia representativa, que tem sido crescentemente usurpada pelas elites econômicas, e de outro a democracia participativa, que seria o exercício da cidadania republicana consciente e responsável por parte das maiorias sociais. Há uma concentração da representação e uma dispersão da participação que compromete os processos democráticos conhecidos revelando o papel das elites. A crise leva as elites a tentar manipular [os processos democráticos] para assegurar os fluxos de recursos necessários ao processo de acumulação global num contexto de crescente insegurança”.

Para ele, embora a concentração do poder central tenha sido a chave do sucesso para a expansão do capitalismo e dê “certa sensação de segurança para as elites oligárquicas” – geralmente na base da repressão policial – não evita a reorganização cotidiana das lutas locais a partir de novos poderes mais participativos e socializados. São as energias coletivas que antes o Estado conseguia canalizar para um certo “conformismo”. “Um dos equívocos da esquerda no século 20 foi tomar o poder central considerando que poderia mudar a forma de funcionamento desse poder. Isso gera uma força de assimilação e incorporação das energias rebeldes dentro da ordem conformista. Isso aconteceu com todos os partidos comunistas e operários que tentaram tomar o poder central”, notou.

Já para o sociólogo, o caráter moral da crise se expressa pela descrença dos segmentos pobres e assalariados com relação aos discursos de verdades contidos nas ideologias modernas de bem-estar material de consumo irrestrito. É que entre as pessoas e um mercado cheio de inovações a cada instante se abre um abismo: a deterioração das condições de vida de grande parte da população. Justamente aquela parcela dependente das políticas públicas que estão sob ataque: seguridade social, saúde, educação. “Temos uma onda de frustração entre desejo de consumo e a prática do consumo e pela constatação da perda de efetividade das políticas públicas. Tudo isso enfraquece a coesão social e gera aumento do conflito e da violência”.

Novo modo de pensar e produzir conhecimento

Paulo Henrique acredita que esses elementos apontam para um diagnóstico: o próprio imaginário da modernidade estaria perdendo sentido. Por isso, para ele, a crise é mais profunda: “ É a falência do conjunto de práticas discursivas e regimes de verdade que definiram um modo particular de pensar e fazer da sociedade moderna ocidental na Europa e funcionaram como vetor esclarecedor dessa modernidade para os territórios coloniais”. O sociólogo acredita que o desafio das ciências sociais hoje é compreender os vários regimes de verdade sobre a sociedade humana no contexto global do capitalismo. “Houve múltiplas modernidades, cada uma com formas múltiplas de enunciação do que se entendeu como moderno”.

Com essa crise – epistêmica – vemos serem colocados em xeque os dois pilares da modernidade: a crença inabalável num progresso técnico e econômico irreversível e a mercantilização da vida sob a lógica utilitária que inspirou o imperialismo, o neoliberalismo e o que ele chama de “colonialidade”. “Os processos de modernização implicaram custos sociais e ambientais que hoje se fazem presentes. Refugiados, epidemias, seca, etc. mostram as contradições. O discurso progressista estruturado na modernização já não serve”.

Mas que outro discurso – ou melhor – outros discursos podem nos tirar do impasse atual? Paulo Henrique acredita que as epistemologias do Sul (conceito do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos) ajudarão a nos colocar “em passos”. Isso porque não partem das mesmas premissas ou esquemas lógicos do pensamento que nos trouxe até aqui. E podem contextualizar processos históricos e sociais “de modo a revelar projetos negligenciadas, abandonados ou reprimidos pelo paradigma colonial eurocêntrico”. Aos poucos, ele acredita, chegaremos lá: “Estamos saindo da era do desenvolvimento a qualquer preço para uma época cheia de incertezas mas também de possibilidades do pós-desenvolvimento”, sentenciou.

(Publicado originalmente no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio)

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