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Elio Gaspari aborda ‘Agenda Brasil’, judicialização da saúde, ANS e a saúde suplementar

Neste domingo, 16 de agosto, o jornalista Elio Gaspari colocou a saúde em evidência, na sua coluna semanal no jornal O Globo. Com o título ‘A xepa de feira de Renan, Dilma e Levy’, Gaspari opinou sobre as alterações no texto da ‘Agenda Brasil’ de Renan Calheiros e ainda sobre o SUS na vida dos políticos – “Nenhum dos dois é freguês do SUS. Renan está coberto pelo plano de saúde do Senado. No ano passado, ele custou R$ 6,2 milhões. É vitalício, garante os dependentes e cobre qualquer cidadão que tenha sentado na cadeira por 180 dias. Já a doutora Dilma, quando precisa, tem o hospital Sírio Libanês”.

Confira abaixo o texto na íntegra (ou acesse a página virtual do jornal):

A “Agenda Brasil” de Renan Calheiros, Dilma Roussef e Joaquim Levy é uma xepa de feira. Seu objetivo é iludir a boa fé do público e alimentar a má fé de maganos que circulam por trás das cortinas do poder. Na segunda-feira tinha 27 itens, na quarta eram 43. Pelo menos dezenove tratam de assuntos que já tramitam no Congresso. Uma das oito novidades apresentadas na primeira versão era o maior jabuti dos tempos modernos. Propunha “avaliar a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS (…), considerando as faixas do Imposto de Renda”. Dias depois, o bicho sumiu. Como jabuti não sobe em árvore, resta saber quem o pôs lá. Pode ter sido um maluco ou, quem sabe, alguém preocupado com a possibilidade de hoje haver pouca gente na rua gritando contra o governo e o Congresso.

Na quarta-feira trocaram o jabuti por uma girafa. Agora, a Agenda Brasil propõe “regulamentar o ressarcimento pelos associados dos planos de saúde, dos procedimentos e atendimentos realizados pelo SUS”. Essa frase só tem um significado, absurdo. Não são os associados que devem ressarcir o SUS, são as operadoras. Se ao final das contas uma parte desse custo vai para os clientes, é outra história. Os associados dos planos são clientes, não são sócios dos bilionários dos planos. Se fossem sócios, teriam recebido algum dinheiro quando a Amil foi vendida por US$ 4,9 bilhões à United Health.

Arma-se uma situação na qual um sujeito tem plano de saúde, paga suas mensalidades e, por algum motivo, é atendido na rede pública. Como Renan, Dilma e Levy querem que seja regulamentado o ressarcimento “pelos associados”, o que está escrito indica é que a patuleia pagará tudo, três vezes. A primeira, quando seus impostos financiam o SUS. A segunda, quando ele financia a operadora do seu plano. A terceira quando seria obrigada a ressarcir a rede pública por ter ido a ela. Bastava que tivessem escrito “ressarcimento, pelos planos de saúde”. Mesmo com essa mudança teriam produzido uma redundância, pois o assunto já está regulado. O artigo 32 da Lei 9.656 não menciona “associados”, mas “operadoras”.

No coração dessa história está a palavra “ressarcimento”, contra a qual os barões das operadoras lutam desde o século passado. Eles não querem ressarcir o SUS quando um de seus fregueses é atendido (ou desovado) na rede pública. Em 1998 o Congresso aprovou a lei que instituiu essa cobrança. Na tramitação, ela foi desossada. Pelo que está em vigor, se um cidadão tem um acidente automobilístico, sofre um traumatismo craniano, é levado para um pronto-socorro público e passa pela cirurgia que lhe salva a vida, o plano de saúde nada devolve ao SUS. Já o hospital cinco estrelas, para onde ele é removido dias depois, cobra do plano até o copo d’água. A Viúva fica com 80% dos custos hospitalares e não recebe um ceitil. (Dois detalhes: as equipes de resgate são obrigadas a levar os acidentados para hospitais públicos. Ademais, é só lá que certamente haverá neurocirurgiões de plantão.)

Além de desossada, a lei do ressarcimento é comida por dentro. Numa frente as operadoras judicializaram-na, sustentando que é inconstitucional. Noutra, beneficiadas por anos de inoperância da Agência Nacional de Saúde Suplementar, remancham os pagamentos. Nos primeiros sete anos de vigência da lei, pagaram apenas R$ 70 milhões. Entre 2000 e 2009, a ANS cobrou R$ 310 milhões relativos a internações e só recebeu R$ 110 milhões. Pior: entre 2007 e 2009, ela conseguiu ter uma arrecadação declinante. No ano passado esse número melhorou, chegando-se a arrecadar R$ 393 milhões só com internações.

Se Renan e Dilma quiserem arrecadar mais, podem se alistar publicamente na aplicação rigorosa da atual lei do ressarcimento e na elaboração de um novo projeto que lhe restaure a ossatura. Nenhum dos dois é freguês do SUS. Renan está coberto pelo plano de saúde do Senado. No ano passado, ele custou R$ 6,2 milhões. É vitalício, garante os dependentes e cobre qualquer cidadão que tenha sentado na cadeira por 180 dias. Já a doutora Dilma, quando precisa, tem o hospital Sírio Libanês.

 

JUDICIALIZAÇÃO

Renan, Dilma e Levy puseram no carrinho de sua agenda um item que diz o seguinte:

“Avaliar a proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS”.

Não pagar esses procedimentos é uma antiga reivindicação das operadoras de planos de saúde. O doutor Antonio Carlos Abbatepaolo, diretor executivo da Associação Brasileira de Medicina de Grupo, sustenta que há “divergências no próprio mundo jurídico” em relação a essas decisões. Jogo jogado, pois, sem divergências, não existiria mundo jurídico. Proibir o outro de ir ao juiz é o sonho de todo litigante.

A porca torce o rabo quando se sabe que as operadoras bateram à porta do STF sustentando que a cobrança do ressarcimento ao SUS é inconstitucional. Mais: em 2006, o presidente da Abramge sugeriu aos seus associados que recorressem aos tribunais contra essas cobranças. Já chegaram à Justiça centenas de reclamações.

 

PORTA GIRATÓRIA

A doutora Dilma colocou na presidência da ANS o doutor José Carlos Abrahão. Em 2010, como presidente da Confederação Nacional da Saúde, uma das guildas do setor privado, ele condenou o ressarcimento num artigo publicado na “Folha de S. Paulo”. Quatro anos depois, quando entregou seu currículo ao Senado, esqueceu-se de inclui-lo, apesar de ter anexado 18 outros.

Em 2009 Lula indicou Mauricio Ceschin para a ANS. Ele vinha da presidência da Qualicorp e, cumprida a quarentena, a ela voltou. Naquele ano, a agência tinha cinco diretores. Três saídos de operadoras.

 

PACOTINHO

Movem-se nas pistas de acesso ao Planalto duas gracinhas do interesse das operadoras de planos de saúde.

A primeira agoniza. Tratava-se de reduzir o valor das multas de quem nega atendimento a um freguês que tem direito. Coisa simples: o valor unitário da multa cairia à medida que a operadora fosse multada muitas vezes. Uma multa, R$ 100. Mil multas, R$ 10 cada. Esse óbvio estímulo à desonestidade foi enfiado numa Medida Provisória, passou pelo Congresso, mas foi vetado pela doutora Dilma.

A segunda enfraqueceu-se, mas ainda tem alguma força. Trata-se de liberar os aumentos dos planos individuais. Se prevalecer, acertará o bolso de 10 milhões de pessoas. Cada uma delas resolveu contratar um plano só para si. Se a mudança acontecer, estará ferrado, mas deve-se reconhecer que se ferrou porque tomou essa decisão.

 

NÚMEROS

Os planos de saúde, e sobretudo alguns de seus donos, confundem a capacidade de operar o governo com uma impunidade inerente aos bilhões de suas contas bancárias. Na última campanha, distribuíram R$ 54,9 milhões, cinco vezes mais do que doaram em 2010. Sozinha, a Amil doou R$ 26,3 milhões, noves fora os R$ 5,7 milhões pagos pelos renomados serviços da consultoria de Antonio Palocci, que, além de petista e ex-ministro da Fazenda e da Casa Civil, é médico. Somados, os outros três grandes doadores, Bradesco, Qualicorp e o grupo Unimed, doaram R$ 25,6 milhões.

Durante a última campanha presidencial, a palavra “ressarcimento” não foi pronunciada.

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