Para rememorar a repressão política aos trabalhadores da saúde, durante a ditadura militar no país, foi lançada durante o VI Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária. A cerimônia contou com a presença do presidente da Abrasco, Luis Eugenio Souza, além do representante do Cebes, José Ruben Bonfim; Hermano Castro, diretor da ENSP; Umberto Trigueiros, diretor do ICICT e Anamaria Tambellini, presidente da Comissão.
Para Luis Eugenio Souza, presidente da Abrasco, é fundamental o envolvimento de todo o setor da Saúde na temática. “Não seremos um país democrático enquanto não repararmos nosso passado, os algozes ainda estão por aí e os jovens precisam saber disso. A Reforma sanitária contribuiu para a construção do país democrático, é uma dívida que precisa se disseminada em todos os setores da sociedade”, pontuou.
Quem também fez uso da palavra foi Hermano Castro, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz). “Para aqueles que ousam percorrer os caminhos das prisões no Brasil, não pode haver impunidade nesse país, lembremos de prisões como a do pesquisador Paulo Bruno: foram 5 dias de horror. 20 anos de ditadura atrasou a reforma sanitária no Brasil, tão necessária para o crescimento deste país. Espero que esta Comissão dê um rumo e esclareça melhor nossa história”.
Para Anamaria Tambelinni, presidente da CVRF, a contribuição da Abrasco vai precisar do apoio fundamental dos associados ‘propomos uma organização nos moldes da experiência exitosa realizada na elaboração de Dossiê dos Agrotóxicos, onde foram mobilizados GT’s, Fóruns e Comissões, bem como, os estudantes de nosso campo’ lembra.
A presidente do Cebes, Ana Costa, não pode estar presente e enviou uma mensagem, confira:
Desde os anos setenta o CEBES direcionou sua atuação política pela democracia e pela construção de um projeto de hegemonia política para fundamentar a Reforma Sanitária Brasileira. Naquele contexto o CEBES se constituiu na perspectiva real de aglutinação de militantes em todos os estados e matizes ideológicas e políticas, mobilizados contra a ditadura, pela democracia, justiça social e pelos direitos sociais para o povo brasileiro. Nossos objetivos enquanto movimento da reforma sanitária não se esgotaram na 8ª Conferência Nacional de Saúde nem no capítulo da Constituição Brasileira e tampouco terminam no processo de implantação do SUS do qual temos participado nos últimos 25 anos. Nosso maior objetivo continua sendo aquele que irá permitir a consolidação real das mudanças societárias que aspiramos: o novo modelo de Estado com mais Democracia, justiça social e com preservação dos direitos humanos. Muitos trabalhadores, professores e pesquisadores da saúde registram em suas biografias as marcas da repressão dos sombrios tempos da ditadura.
É preciso que o país conheça a verdade sobre estas pessoas que tiveram seus direitos humanos violados pela ditadura. Estas violações de direitos humanos que ocorreram devem ser registradas, documentadas e amplamente divulgadas em todos os seus processos, nos seus variados formatos e perversas sutilezas. O Brasil precisa recompor a sua Historia da saúde, tornando publico fatos e personagens que, por suas ideias ou descobertas cientificas, foram banidos, demitidos ou censurados. É preciso conhecer para não repetir o vivido. É preciso conhecer o passado para construir tempos futuros melhores. Esta é uma exigência da Democracia. Entretanto, para além dos tempos da repressão militar ocorridos na ditadura, a Comissão da Verdade da Reforma Sanitária precisa estar atenta , denunciar e debater sobre as múltiplas violências e violações de direitos humanos que ainda hoje ocorrem, cotidianamente, e que são incompatíveis com a democracia, a cidadania e a saúde que defendemos. Lembramos de todos aqueles que têm seus direitos humanos solapados, para citar alguns: os trabalhadores rurais sem terra, os negros, os ciganos ou os que vivem em situação de rua. Lembramos particularmente das mulheres vitimas da violência de gênero que todos os dias são mortas, mutiladas e destruídas física e psicologicamente. Isso é inadmissível, intolerável!
Acreditando no potencial que tem a nossa Comissão da Verdade da Reforma Sanitária para a politização e o debate sobre o tema dos direitos humanos na sua articulação fundamental com a saúde, o CEBES se juntou na primeira hora aos que construíram essa proposta de trabalho. A Comissão exigirá muito de todos nós mas temos a certeza que o seu produto será fundamental para eliminar essa lacuna da memória nacional essencial para o futuro. Querida amiga Anamaria Tambellini, estamos juntas! Meu reconhecimento pela coragem de propor e coordenar esse trabalho. O CEBES estará junto não só pela nossa valorosa representação mais que justa e digna, o José Ruben, mas também em tudo o que for necessário. Saudações cebianas e abraço à todos.
O advogado Modesto da Silveira, foi homenageado durante o lançamento e Marco Antonio Vilela dos Santos escreveu um texto especial que emocionou os participantes, confira:
Modesto da Silveira – uma vida dedicada à defesa dos direitos humanos
Modesto da Silveira é um daqueles homens de que fala Brecht – “os que lutam toda a vida” e, por isso, “são imprescindíveis”. Modesto dedicou quase que toda uma vida à defesa dos direitos humanos. Segundo Heleno Fragoso, um dos maiores juristas brasileiros, Modesto “foi o advogado que mais defendeu perseguidos pela ditadura”, e entre esses, vários profissionais da área da saúde.
Toda sua história de vida é marcada por situações emocionantes, momentos extremamente difíceis, com que Modesto soube corajosamente lidar e chegar aos nossos dias com contagiante disposição de prosseguir e seguir na luta. Recentemente, quando milhões de brasileiros foram às ruas, foi possível encontrá-lo por diversas vezes nelas, participando.
Ele mesmo, durante a ditadura, por sua atuação corajosa, foi perseguido e sequestrado por agentes do DOI-CODI e teve suas filhas ameaçadas. Uma época em que vários advogados, mesmo alguns dos mais conhecidos de então, como Sobral Pinto, Heleno Fragoso, Evaristo de Moraes, Augusto Sussekind, Vivaldo Vasconcelos, George Tavares, entre outros, também foram seqüestrados e torturados por denunciarem a tortura e defender presos políticos.
Antonio Modesto da Silveira nasceu em 23 de janeiro de 1927, no município de Uberaba, MG. Filho de família pobre, lavradores sem terra, dos 9 aos 16 anos trabalhou em serviços pesados como lavrador, operário de pedreira e lenhador, ofícios que lhe marcaram o corpo.
Estudou à noite no Ginásio Oswaldo Cruz na cidade de Uberlândia com bolsa de estudos que ganhou e manteve por ser o primeiro aluno durante todo o curso. Era a única bolsa de estudos em todo o município de Uberlândia à época.
Para concretizar sua aspiração de ser advogado, mudou-se para o Rio de Janeiro onde trabalhava e estudava. Com o objetivo de suprir necessidade material da família, ingressou por concurso na Marinha Mercante e durante sete anos viajou o mundo, adiando seu projeto de vida de dedicar-se à advocacia.
Formou-se em direito pela antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG), hoje UERJ, em 1962. Dois anos depois, aconteceria o golpe militar de 1964, que já o arrastaria, desde os primeiros momentos, para a defesa de presos e seqüestrados políticos.
Defendeu centenas de presos e perseguidos políticos pela ditadura, entre eles, Waldir Pires, Mario Alves, Gregório Bezerra, David Capistrano, Luiz Maranhão, Maria Auxiliadora Lara Barcelos, Leonor Pinto de Souza entre tantos lideres estudantis, sindicais, intelectuais e militantes de todas as correntes políticas.
Com novo ascenso do movimento popular, crescendo a campanha pela “Anistia – ampla, geral e irrestrita”, em 1978, Modesto foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro com expressiva votação. No Congresso Nacional, foi um dos parlamentares que encaminhou a votação da Lei da Anistia e também lá se destacou pela defesa dos direitos humanos, da justiça social e dos interesses nacionais.
E assim Modesto vem seguindo, incansável, participando dos mais variados momentos políticos do país, das atividades de maior destaque no cenário do campo democrático e popular às mais singelas homenagens a lutadores do povo, marcando sua presença com combatividade, humildade e companheirismo. A solidariedade e o calor humano são marcas registradas de sua bela história.
Pensar no aprendizado de vida que sua trajetória emana nos permite encerrar esta breve biografia nos remetendo ao título do texto autobiográfico do grande poeta chileno Pablo Neruda – “Confesso que vivi”. Expressão poética que Modesto certamente poderia incorporar em sua trajetória de 86 anos, plena de intensas e emocionantes estórias que ele tem a nos repassar.
Bastante emocionado, Modesto declarou ‘Sou um menino da roça que só calçou botina aos 15 anos. Para este plenário cheio de crianças com menos de 60 anos, peço que façam do Arouca o patrono desta Comissão. Esta iniciativa pode nos trazer o tão esperado Umbutu, como disse Nelson Mandela, para que tenhamos entendido nossa história, a história das viúvas e órfãos do talvez quem sabe. Tenho uma cachoeiras de histórias para contar, pode ser que na lentidão do aprendizado, nosso futuro seja como nós sonhamos’.
Veja outras declarações:
‘Tenho uma satisfação pessoal, como 1º presidente do Cebes, em ver que 37 anos depois de sua criação, o Cebes continua com a mesma inteireza com que foi fundado’ referiu José Rubem.
‘Para mim a Anamaria é um motorzinho, tinhosa à frente desta tarefa. O Brasil está se reencontrando com a sua história, muito feliz em ver esta comissão sendo lançada na semana da República, precisamos realmente tratar esta dívida histórica com a nação brasileira. O instituto José Carelli pode contribuir muito para esta comissão’, lembrou Umberto Trigueiros.