É difícil explicar como um país com o maior e mais completo programa de vacinação do mundo, o Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1973 – antes mesmo da criação, em 1988, do Sistema Único de Saúde (SUS) – foi desmontado até o ponto em que chegou hoje.
Para compreender, preciso retroceder um pouco na história. Com a emergência da pandemia de covid-19, que mudou o mundo, o Brasil já estava fragilizado em seu financiamento às pesquisas científicas, com ataques à imagem e ao orçamento de suas instituições de pesquisa. As reduções nos investimentos começaram em 2015 e se aprofundaram gravemente em 2019.
Em 2020, os ataques continuam. Uma onda negacionista toma conta do País, tendo como um dos protagonistas a autoridade máxima do Executivo. Medidas de mitigação da pandemia foram não somente desprezadas pelo governo, mas combatidas. Distanciamento físico, uso de máscaras e restrição de circulação se transformaram em guerra ideológica, quando deveriam ser medidas fundamentais de saúde pública.
Ao contrário do Brasil, no resto do mundo 2020 se consagrou como o “Ano da Ciência”. Orçamentos robustos foram imediatamente investidos por agências internacionais em iniciativas público-privadas, para que as vacinas pudessem ser rapidamente testadas e disponibilizadas para uso em larga escala. A primeira vacina aprovada no mundo, fruto da parceria Pfizer-BioNTech, revolucionou a forma como pensamos os imunizantes e uma nova tecnologia está agora à disposição da humanidade: as vacinas de RNA mensageiro (ácido ribonucleico – mRNA).
Enquanto a Pfizer procurava o governo brasileiro para negociar as doses, tínhamos o presidente levantando falsas alegações sobre essa vacina poder mudar o DNA e dizendo que “você pode até se transformar em jacaré. Quem vai querer tomar?”. Ao mesmo tempo, ele anunciou a necessidade de assinatura de um termo de responsabilidade, colocando, assim, mais uma barreira para a aceitação dos imunizantes no País.
Com intensa movimentação de cientistas brasileiros, o termo foi proscrito. No entanto, o governo brasileiro desprezou o acordo com a Pfizer e a vacina não havia sido disponibilizada no Brasil até maio, apesar de termos publicações robustas de sua eficácia e efetividade.
Paralelamente a essa negociação frustrada, duas instituições públicas brasileiras iniciaram acordos para produção de vacinas contra a covid-19: o Instituto Butantan e a Fiocruz. Até dezembro de 2020, o Ministério da Saúde só havia confirmado o acordo com a Fiocruz para a transferência de tecnologia da vacina produzida pela colaboração da AstraZeneca-Oxford.
O PNI sob a gestão de militares e sua campanha de vacinação contra a covid-19 iniciou com muitos percalços. Primeiro, o envio ao Supremo Tribunal Federal (STF) do Plano de Vacinação, em que constavam os nomes de vários pesquisadores e pesquisadoras, dentre eles, o meu nome, como elaboradora desse plano. A publicação sem a devida autorização de pesquisadores envolvidos foi alvo de contestação inclusive no STF, com documento enviado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Após o lançamento oficial do plano, com as devidas correções, os grupos prioritários com fases definidas até os grupos de comorbidades foram anunciados. Depois, em publicação de versão posterior, houve a retirada das fases e a criação de um grande grupo prioritário com quase 78 milhões de pessoas. Essas mudanças em um curto espaço de tempo possibilitaram a abertura de precedentes para que estados e municípios pudessem definir suas ordens de prioridades, prejudicando a estratégia até então utilizada no Brasil, de coordenação centralizada das campanhas.
Apenas em janeiro de 2021 o acordo com o Butantan foi finalmente fechado com o Governo Federal, mais uma vez, após forte pressão da sociedade e de associações científicas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou o uso emergencial das vacinas CoronaVac e Oxford contra a covid-19, no dia 17 de janeiro. No mesmo dia, tivemos em São Paulo a primeira vacinada contra a covid-19 no Brasil, uma enfermeira, com a vacina CoronaVac.
O início da campanha foi marcado pelo atraso de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs). Foi quando descobrimos nossa total dependência da produção chinesa. A falta de investimento na cadeia produtiva do conhecimento, como projeto de desenvolvimento nacional, ficou evidenciada e merece uma correção de rumo pelas autoridades do País.
Por fim, após quatro meses de intenso trabalho das sociedades científicas contra as fake news e a falta de uma campanha oficial de imunização, precisamos reconhecer que a maior parte da população quer ser vacinada. Mais uma vitória dos cientistas, das sociedades científicas e do jornalismo comprometido com a ciência. Agora, precisamos nos unir para garantir que a ciência brasileira sobreviva tendo orçamentos compatíveis.
Vida longa à ciência no Brasil!
Ethel Maciel é Epidemiologista, professora titular da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e presidente da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose (REDE-TB)