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Como os planos de saúde se apropriam do SUS? – Entrevista com José Sestelo

Gilson Camargo, do Jornal Extra-Classe, do Sinpro RS

Controlados por fundos de investimentos globais e bancos de investimentos, os planos de saúde privados estão se apropriando cada vez mais do orçamento e da estrutura públicos da saúde. Para o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), José Antônio de Freitas Sestelo, o setor privado consolidou um padrão de articulação público-privado concentrador de recursos. “Nos últimos 30 anos, os esquemas privativos de intermediação de assistência cresceram a ponto de as empresas controlarem discricionariamente um volume anual de recursos superior ao que é empenhado pela União na rede pública”, afirma nesta entrevista ao Extra Classe. Integrante do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde Henry Jouval Jr. (GPDES) ligado ao Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Sestelo afirma que os empresários não querem o fim do sistema público, mas a sua transformação em um “grande resseguro”. Em síntese, o país caminha para um apagão da saúde, adverte o pesquisador: “num futuro próximo a classe média não terá nem plano de saúde e nem SUS, porque os planos melhores serão muito caros e os baratos serão inúteis. E o SUS está ameaçado de desmonte com essa política irresponsável de congelamento de despesas públicas com seguridade social”.

+ Leia na íntegra na publicação original no site do Sindicato dos Professores do R.Grande do Sul

Extra Classe – Como o senhor avalia a proposta do “Novo Sistema Nacional de Saúde”, que vem sendo defendida por entidades empresariais desde 2013?
José Antonio Freitas Sestelo – A expressão “Sistema Nacional de Saúde” foi usada durante a ditadura militar, mais precisamente na Lei Federal nº6.229, de 17/07/1975, que definia o Sistema Nacional de Saúde e seus componentes. Essa Lei foi revogada pela Lei 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Lei Orgânica da Saúde). Evocar os termos utilizados no entulho autoritário pode ser uma estratégia retórica de negação do Sistema Único de Saúde (SUS), assim como de seus princípios e diretrizes que partem da premissa da saúde como um direito de cidadania. Além disso é algo que pode ser entendido como uma aspiração de restauração da velha ordem pautada na década de 1970, quando os antecessores dos atuais grupos empresariais foram constituídos à sombra da estrutura previdenciária oficial, amparados por políticas fiscais e tributárias convenientes aos seus interesses corporativos e contrárias aos interesses da maioria da população de trabalhadores. É possível que nem todos os envolvidos nessa operação de “guerra cultural” contra o SUS tenham consciência do que estão evocando, mas o fato é que há alguma semelhança entre o espírito do assim denominado “complexo de serviços do setor público e do setor privado” da lei de 1975 e as propostas dos empresários atuais.

EC – O que é o ‘Livro Branco da Saúde’?
Sestelo – É uma publicação patrocinada pela Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) que foi distribuída durante a campanha eleitoral em 2014/2015 para os principais candidatos a cargos majoritários e proporcionais. A rigor é um panfleto político que apresenta as principais propostas dos empresários do setor hospitalar mais capitalizado (mas também de outros subsetores empresariais da saúde), entretanto, o seu formato é o de uma tese acadêmica dividida em um primeiro volume que seria uma espécie de “marco conceitual” e um segundo volume que apresenta as propostas propriamente ditas. É um trabalho que foi feito sob encomenda por uma empresa espanhola especializada em consultoria microeconômica para o setor da saúde, contratada pela ANAHP para esta finalidade.

EC – Um projeto de saúde para o país a partir de propostas dos empresários do setor hospitalar?
Sestelo – A Antares Consulting, autora do “Livro Branco Brasil Saúde 2015” é uma empresa de consultoria sediada na Espanha que jamais teria a possibilidade de elaborar um relatório de escopo tão abrangente, envolvendo todo o sistema de saúde de um país da complexidade e extensão territorial do Brasil. O governo do estado da Bahia também deu a sua contribuição ao portfólio de negócios desta empresa ao abrir para ela espaço de atuação na elaboração da parceria público privada do Hospital do Subúrbio em Salvador. Outro parceiro de peso foi o próprio presidente do Banco Mundial que também esteve no Brasil para prestigiar o negócio formalizado na Bahia, dado o seu significado estratégico para o banco. Não fosse isso, a Antares Consulting estaria, dentro dos seus limites, cuidando de fazer intervenções micropolíticas em unidades assistenciais de países periféricos da Europa como Espanha e Portugal, onde a gestão de hospitais públicos vem sendo privatizada por determinação do Banco Central Europeu. Grupos econômicos globais como a AMIL/United Health vêm se articulando para auferir lucros a partir dessa plataforma.

EC – Qual é a estratégia da Antares e seus parceiros no Brasil?
Sestelo – É possível que a ANAHP e a Antares Consulting mantenham relações institucionais com a International Hospital Federation. Esta associação internacional tem um membro importante no Brasil: a Confederação Nacional de Saúde, Hospitais, Estabelecimentos e Serviços (CNS), presidida até recentemente pelo ex-diretor da Agência Nacional de Saúde Suplementar, José Carlos Abrahão. O cerne da proposta empresarial está apoiado na promoção de um padrão de articulação público-privado regressivo, concentrador de renda e de recursos assistenciais que usa o sistema público como um colateral para operações de caráter comercial e financeiro favoráveis a interesses particulares.

EC – O que pretendem é uma “reforma”?
Sestelo – Não tenho ouvido muitos empresários falarem em “reforma”, creio que essa palavra tem sido mais utilizada pelos próprios sanitaristas receosos de que exista uma trama para “acabar com o SUS”. Esse aspecto precisa ser esclarecido para evitar mal-entendidos/mal explicados. Existe uma narrativa simplificadora que passa a impressão de que, da noite para o dia, estamos sob a ameaça de passar de um mundo ideal onde existe um sistema público de saúde (o SUS) para um mundo onde existem apenas as empresas privadas de assistência. Não é bem assim. É preciso ver as coisas em perspectiva para não se incorrer em erros de interpretação que comprometam nossa capacidade de ação política.

EC – Então, qual é o modelo almejado pela iniciativa privada?
Sestelo – O SUS é uma grande conquista e um patrimônio dos trabalhadores brasileiros, mas a sua criação na década de 1990 não foi capaz de deter o processo de expansão da ação predatória do capital sobre o sistema de saúde. Longe disso, nos últimos 30 anos os esquemas privativos de intermediação de assistência cresceram a ponto de as empresas controlarem discricionariamente um volume anual de recursos superior ao que é empenhado pela União na rede pública. Além disso, novos agentes econômicos, como fundos de investimento globais e bancos de investimento, passaram a controlar os principais grupos econômicos da saúde, exercendo uma enorme influência sobre as ações de governo. Obviamente essa influência mudou de patamar na atual conjuntura depois da ruptura ocorrida no bloco político de governo em 2016, mas isto não significa que entre 2003 e 2016 os empresários estivessem afastados do poder. De fato, ao longo dos últimos 30 anos se consolidou um padrão de articulação público-privado na assistência bastante orgânico com os interesses dos empresários. O que ocorre agora é que, dadas as circunstâncias políticas favoráveis, os agentes econômicos empresariais querem ainda mais.

EC – Por exemplo?
Sestelo – A pauta é a mesma que está colocada desde os anos 1970 com a diferença de que, desde então, a base operacional controlada por particulares na saúde tornou-se mais ampla e complexa. Como a saúde é um bem de relevância pública e as necessidades de assistência têm um alto grau de imprevisibilidade, as empresas setoriais sempre guardaram uma relação muito estreita com as políticas públicas. As atuais empresas de planos de saúde não são entidades míticas que existem desde sempre por decreto divino. Elas passaram a existir e prosperar em decorrência de decisões políticas que foram tomadas nos últimos anos e a estrutura assistencial pública sempre foi utilizada como apoio para o seu processo de acumulação de capital. Os empresários utilizam eufemismos como “parceria”, “ganha/ganha”, “coordenação planejada” para revestir com uma camada de nebulosidade a sua relação predatória e concorrencial com a assistência pública. Em outras palavras, eles querem se apropriar, na forma de lucro, de uma parte maior do orçamento público empenhado nas rubricas de políticas sociais, e querem fazer isso sem correr riscos. Como contrapartida o que o conjunto da sociedade brasileira recebe é o aumento dos custos gerais do nosso sistema de saúde decorrente dos altos custos administrativos da intermediação da assistência e um aumento na concentração de recursos assistenciais reservados para uso privativo de uma pequena parcela da população.

EC – O que isso representa para a sociedade – para aqueles que não têm condições de pagar pelos serviços de saúde?
Sestelo – A sociedade brasileira tem como traço estrutural um alto grau de desigualdade. Isso aqui não é o Japão, não é Cuba, não é a Suécia. Portanto, as políticas públicas que precisamos pôr em prática precisam levar em conta a nossa peculiaridade e enfrentar o problema da desigualdade como política de Estado. Do contrário estaremos fadados a reproduzir de maneira indefinida o nosso padrão histórico de sociabilidade injusto e desumano. Quem mais precisa de assistência é quem menos pode pagar por ela, portanto, vincular o acesso à capacidade de pagamento do usuário é condenar a maioria da população à desassistência e, em muitos casos, à morte por causas evitáveis. Quando segregamos espaços assistenciais privativos subsidiados por recursos públicos, como acontece com o esquema de intermediação assistencial dos planos de saúde, estamos tirando de quem tem menos para a dar a quem tem mais. Esse é o fato político e social relevante nessa história.

EC – O presidente da Febraplan é o empresário Pedro de Assis, dono da Agemed, empresa que surgiu aninhada à Tubos e Conexões Tigre e hoje é a maior operadora de planos de saúde de Joinville, Santa Catarina. Como surgiu e qual a influência da Agemed nesse movimento e no mercado de saúde?
Sestelo – A Agemed surgiu e se consolidou dentro do espaço de transações do esquema comercial de intermediação da assistência protegido pela ANS. É um espaço comercial e financeiro que oferece grandes oportunidades de negócios e, de fato, diversas empresas que surgiram depois dos anos 1990 como a Agemed no sul do Brasil e a Hapvida no Nordeste, têm prosperado sob essas condições favoráveis. Embora os empresários tenham interesses corporativos em comum, também há contradições e concorrência entre grupos e segmentos no interior do setor. Tudo indica que a Febraplan é uma entidade que surgiu a partir de disputas por espaço político e comercial entre Agemed e Hapvida, ou seja, sem espaço na Fenasaúde e na Abramge, a Agemed tratou de criar a sua própria entidade para atuação política corporativa. Recentemente um evento patrocinado pela Febraplan ganhou enorme destaque nas mídias sociais como se ali se estivesse tramando a destruição do SUS e a criação, ou restauração, de um “Sistema Nacional de Saúde”. Na verdade, nem a Febraplan é uma entidade representativa dos principais empresários do setor, nem os empresários querem o fim do SUS, até por que o SUS tal qual ele se apresenta hoje, é orgânico aos interesses empresariais. Precisamos estudar mais sobre o setor privado e conhecer melhor os seus agentes para não incorrer em erros de análise, atribuindo importância ao que não tem e deixando de olhar para o que se passa sob os nossos pés.

EC – Por que a expansão dos planos de saúde privados ameaça o SUS?
Sestelo – Os recursos assistenciais existentes no país são limitados. Uma política assistencial coerente deveria tratar fundamentalmente de distribuir tais recursos de forma equânime e equitativa segundo a lógica sanitária das necessidades de saúde da população, porque a saúde não é um bem de consumo qualquer, mas é um bem de relevância pública. Quando se delimita um espaço privativo de assistência reservado para 30% da população se estabelece uma barreira de acesso para os 70% restantes que ficam proibidos de usar aqueles recursos assistenciais. No Brasil ainda existe o agravante de que esse espaço privativo é subsidiado por recursos públicos na forma de renúncia fiscal e vantagens creditícias para as empresas. Ou seja, o Estado terá menos para financiar o sistema público. Por outro lado, quem é cliente das empresas de planos de saúde não perde suas prerrogativas de cidadania e continua podendo usar o SUS naquilo que for conveniente.

EC – E quem não tem plano de saúde?
Sestelo – É comum nas cidades de médio e pequeno porte ver pacientes do SUS serem removidos de ambulância para as capitais em busca de atendimento que não está disponível em suas cidades de origem. Muitas vezes isso não ocorre porque naquelas cidades não existam especialistas ou equipamentos adequados. Eles existem, mas não estão disponíveis para uso da população em geral. São reservados para uso privativo da clientela das empresas de intermediação assistencial e para os clientes que pagam por desembolso direto. Essa é a lógica concorrencial que tem a sua expressão mais evidente na dupla porta dos hospitais conveniados que fazem uma regulação perversa dos casos a serem tratados segundo a capacidade de pagamento do usuário. A população sabe claramente o que significa isso na prática. É injusto, é antiético e pode ser desumano.

EC – Ao contrário do que vem sendo difundido desde a década de 1970 pelos empresários, a lógica da privatização da saúde torna o sistema público cada vez mais caro, excludente e regressivo. Por quê?
Sestelo – Existe um custo de transação implícito nos processos de intermediação. Quanto mais intermediários em uma cadeia de produção de serviços ou produtos, maior tende a ser o custo final. É claro que há situações em que os processos de intermediação são necessários para dinamizar a distribuição dos recursos, mas no caso da assistência à saúde ocorre o inverso. São empresas que não acrescentam nada de inovador, não aumentam a produtividade do sistema, ao contrário, burocratizam para, ao final, se apropriar de uma parcela importante dos recursos na forma de lucro. O exemplo do sistema de saúde dos Estados Unidos ajuda a entender melhor essa questão. Lá não existe um sistema público de acesso universal e os custos de intermediação são extremamente altos a ponto de se gastar mais de 17% do PIB com saúde, enquanto que a média mundial em países de renda alta está entre 8% e 9% do PIB. Um sistema assim tão caro, entretanto, não apresenta resultados sanitários superiores, ou seja, é caro e ineficiente. No Brasil experimentamos, entre 2011 e 2015, um aumento de 7,8% para 9,1% do PIB em gastos totais em saúde, segundo o IBGE. Nem por isso tivemos uma melhora nos principais indicadores de morbidade. Creio que é necessário investigar quais são os determinantes desse processo macroeconômico e verificar se ele configura realmente uma tendência. Se for esse o caso, a nossa perspectiva seria caminhar em direção a um sistema caro e ineficiente como o estadunidense? Fica a questão em aberto.

EC – O senhor tem afirmado que os empresários não querem a extinção, mas a adequação do SUS aos seus interesses. Por quê?
Sestelo – Não vejo ninguém declarar abertamente que é contra o SUS, nem à direita nem à esquerda do espectro político. O que existe são propostas de ajuste que desvirtuam a concepção original inscrita na lei. Tem sido assim desde o início. O SUS nunca pôde expressar todo o seu potencial transformador sobre o padrão de sociabilidade brasileiro. Os empresários estão estabelecidos sobre um padrão de articulação público-privado regressivo pelo menos desde os anos 1960 e nada indica que essa tendência venha a se modificar no curto prazo. Mesmo nos últimos 30 anos, com todos os avanços que a criação do SUS proporcionou, quando olhamos para o padrão de articulação público-privado vemos que ele continuou regressivo e os espaços de transação reservados para os empresários se ampliaram, não foram reduzidos. O que ocorre agora é que temos uma conjuntura em tudo favorável ao aprofundamento desse fenômeno e os empresários estão avançando ainda mais sobre um terreno que ocupavam.

EC – Por que interessa ao setor privado tornar o SUS um “grande resseguro”? O que isso implica?
Sestelo – É importante que se tenha claro que as políticas sociais de assistência são uma forma indireta de salário, ou seja, o sistema de saúde funciona como um mecanismo modulador do permanente conflito distributivo entre capital e trabalho nas sociedades modernas. Trata-se de uma discussão política para saber o tanto de riqueza do país vai ser realizado na forma de renda do trabalho e o tanto que vai ser apropriado na forma de lucro. A ciência atuarial tornou possível precificar com mais precisão os riscos relacionados com o processo de adoecimento. O que ocorre é que há determinados tipos de risco que são mais altos e, portanto, mais caros do que outros. As empresas praticam uma seleção prévia dos riscos que consideram comercialmente rentáveis e vendem pacotes de cobertura que são convenientes aos seus interesses, mas não necessariamente conveniente aos interesses dos trabalhadores. Os riscos mais altos e mais caros são empurrados para o orçamento público que, no Brasil, é financiado, principalmente, pela renda do trabalho via impostos indiretos sobre o consumo. O SUS conveniente aos interesses dos empresários é aquele que assume os riscos mais altos relacionados com condições crônicas e tratamentos de alto custo que exigem a imobilização de recursos em estruturas assistenciais. É como se o sistema público funcionasse como um seguro do seguro, preservando o caixa das empresas do alto grau de imprevisibilidade de determinados processos de adoecimento.

EC – Como o senhor avalia as novas regras para cobrança de coparticipação e franquia em planos de saúde divulgadas no dia 28 de julho pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)?
Sestelo – Se havia alguma dúvida de que a ANS representa uma agência de governo que é orgânica aos interesses dos empresários em detrimento dos interesses dos trabalhadores creio que agora não há mais. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) se retirou da Câmara de Saúde Suplementar depois dessa decisão, e com razão. As novas regras praticamente transformam as transações comerciais das empresas com seus clientes pagantes em operações isentas de quaisquer tipos de risco para as empresas. Os riscos maiores já vinham sendo empurrados para o SUS e agora, mesmo os riscos menores que seriam inerentes à dinâmica do processo assistencial, estão sendo empurrados para os usuários com a justificativa de que se trata de um fator de moderação de uso ou de racionalização de recursos. Há muitos estudos que evidenciam o fato de que os mecanismos de copagamento não ajudam a racionalizar os recursos assistenciais, mas geram distorções que, ao final resultam em sobreutilização da alta complexidade com casos que poderiam ter sido tratados em ambulatórios. A promessa de que as novas medidas vão resultar em mais opções de pacotes convenientes a usuários de baixo risco com preços menores é falaciosa. Provavelmente o que vai ocorrer é que, de agora em diante, a maioria dos pacotes serão vendidos com esses mecanismos financeiros de proteção das empresas. Algo parecido ocorreu recentemente com a cobrança em separado para despachar bagagens em companhias aéreas. A promessa de que os preços médios das passagens seriam reduzidos não se cumpriu. Na prática as empresas passaram a cobrar mais, oferecendo menos. É essa a lógica que está sendo posta em prática.

EC – A Abrasco questionou a nomeação do empresário Rogério Scarabel Barbosa para a direção da ANS por ele ser sócio de um escritório de advocacia que representa interesses de empresas perante a Agência. A nomeação coloca em xeque a legitimidade da ANS?
Sestelo – Claro. Na administração pública não basta ser formalmente correto é preciso também ser ostensivamente correto. Como confiar em um juiz que é também empresário? Como confiar em um diplomata ou um militar de alta patente que tem dupla nacionalidade? No caso da ANS, além do alto escalão que compõe a diretoria colegiada é preciso avaliar a porta giratória que envolve os escalões inferiores, que são muito influentes no trato dos problemas do dia a dia das empresas. Não é que a ANS exista para criar problemas para as empresas, mas deveria assumir claramente o seu lugar como agência de governo que defende o interesse público em saúde. Deveria ser um agente a serviço do seu principal que é o gestor federal do SUS. Não sendo assim é melhor deixar correr o mundo ideal da autorregulação que é o sonho dourado dos empresários. Na prática é isso o que tem acontecido há anos.

EC – Por que o senhor diz que num futuro próximo a classe média não terá nem plano de saúde e nem SUS?
Sestelo – Porque os planos de saúde melhores serão muito caros e os baratos serão inúteis. E o SUS, que sempre preencheu as lacunas dos pacotes vendidos pelas empresas, apesar do seu histórico de subfinanciamento, agora está ameaçado de desmonte com essa política irresponsável de congelamento de despesas públicas com seguridade social. Na Europa, a classe média compreende que apesar de ter um nível de renda superior ao operário de chão de fábrica pertence à mesma categoria que vende sua força de trabalho em troca de salário, ou seja, também é trabalhador. É preciso compreender que não há solução estrutural viável de sistema assistencial que seja de uso privativo da classe média sem incluir os trabalhadores em geral.

EC – Com tantos retrocessos, o senhor acredita que é possível retomar o debate sobre um sistema público, universal e gratuito de saúde?
Sestelo – Mais do que nunca é preciso retomar esse debate. O sistema deve ser público e financiado com recursos de impostos cobrados de forma progressiva. O fato de não condicionar o acesso e utilização ao pagamento não significa que seja gratuito. Nós temos conhecimento suficiente e capacidade operacional para fazer funcionar um sistema que preserve o interesse público em saúde. Não se trata de uma opção ideológica, mas de uma decisão política racionalizadora e ao mesmo tempo civilizatória. Creio que as pessoas de bom senso desejam viver em um país onde não exista morte e adoecimento por causas evitáveis incidindo de forma iníqua sobre pessoas sem dinheiro para pagar pela assistência. No final, isso é ruim para todos, mesmo para quem pode pagar. Quando se estica demais a corda, esgarçando os princípios da boa convivência social, se abre a possibilidade para se conversar sobre novas bases. Quem sabe agora que a classe média está sendo duramente afetada pelo avanço do processo de acumulação de capital na assistência se possa rever esse arranjo distributivo injusto e desumano que vem sendo implantado desde os tempos da ditadura…

EC – Considerando que todo sistema tem as dimensões pública e privada e que os empresários agem politicamente e de forma legítima, como o senhor já afirmou, o que o campo que defende o sistema público precisa reavaliar?
Sestelo – Essa é uma discussão de caráter acadêmico e político também. Considero um equívoco conceitual dividir o sistema de saúde em dois compartimentos estanques, um público e o outro privado, que não se comunicam entre si. Isso não existe em nenhum lugar do mundo. Entretanto é igualmente um equívoco tratar as dimensões pública e privada da assistência como se fossem qualitativamente indistintas. Há diferenças qualitativas entre essas duas dimensões que precisam ser consideradas para que se possa estabelecer um padrão de articulação público-privado em que os interesses particulares estejam subordinados ao interesse público, porque a saúde é um bem de relevância pública. O Brasil é um país onde a lei permite que a iniciativa privada atue comercialmente no setor da saúde, mas essa atuação precisa ser fortemente regulada. As críticas que são feitas aos problemas administrativos da administração pública direta devem ser consideradas na perspectiva de aperfeiçoamento institucional, não do desmonte da estrutura pública construída ao longo dos anos. Mas isso só vai ocorrer se formos capazes de sair dos limites estreitos das explicações dicotômicas e reducionistas e passar a pensar de forma dialética, integrativa, reconhecendo as diferenças para melhor organizar os sistemas. Eu sou otimista.

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